10.4.12

MIA COUTO

  FONTE: 

http://lusofonia.com.sapo.pt/LLP.htm
 
Índice



NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA

Nascido em Beira, Sofala, Moçambique, no dia cinco de Julho de 1955, António Emílio Leite Couto (Mia Couto) tem a sua primeira formação académica em Biologia. Fez os estudos secundários na Beira e frequentou, de 1971 a 1974, o curso de Medicina em Lourenço Marques (actualmente, Maputo), onde se vivia um ambiente racista muito vincado. Por esta altura, o regime exercia grande pressão sobre os estudantes universitários. O conjunto destas circunstâncias leva-o a colaborar com a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), partido marcado pela luta pela independência de Moçambique de Portugal.
Após a Independência Nacional, em 1975, ingressou na actividade jornalística, dirigindo três veículos de comunicação: Agência de Informação de Moçambique (1976 a 1979), Revista Tempo (1979 a 1981) e Jornal Noticias (1981 a 1985). Abandonou a carreira jornalística voltando a ingressar na Universidade para, em 1989, terminar o curso de Biologia, especializando-se na área de Ecologia. A partir daí mantém colaboração dispersa com jornais, cadeias de Rádio e Televisão, dentro e fora de Moçambique. Hoje realiza a sua profissão como biólogo na   área de estudos de impacto ambiental.
Mia Couto é hoje o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no estrangeiro e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal (num total de mais de 400 mil exemplares). Colabora desde a primeira hora com o grupo teatral da capital de Moçambique “ Mutumbela Gogo ” e escreveu (ou adaptou) diversos textos que foram representados por este grupo de teatro. Livros seus (como a Varanda do Franjipani e contos extraídos de Cada Homem é uma raça ) foram adaptados para teatro em Moçambique, Portugal e Brasil.  Em finais de Dezembro de 1979, no Casale Garibaldi, de Roma, representou-se a peça “A princesa russa”, adaptação para palco do conto com o mesmo título, incluído em “ Cada homem é uma raça”. Natália Luiza (do Teatro Meridional) em colaboração com Mia Couto fizeram a adaptação dramatúrgica de Mar me quer, que posteriormente editada, em 2001, pela Cena Lusófona.

Obras publicadas: 
Raiz de Orvalho – (poesia) Maputo: Cadernos Tempo, 1983. Publicado pela Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO). Livro intimista, lírico, uma espécie de contestação contra o domínio absoluto da poesia militante, panfletária.
Vozes Anoitecidas (contos) Maputo: Assoc. dos Escritores Moçambicanos, 1986.
Cronicando – (crónicas) Maputo: Notícias, 1986. Este livro reúne crónicas de Mia Couto publicadas na imprensa moçambicana no final da década de 1980.
Cada Homem é uma Raça –.(contos). Lisboa: Caminho, 1990. “Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia." (excerto de uma história do livro).
Terra Sonâmbula – (romance), 1992 Primeiro romance publicado por Mia Couto, tem como pano de fundo a guerra em Moçambique, da qual traça um quadro de um realismo forte e brutal.
Estórias Abensonhadas – (contos) Lisboa, Ed. Caminho, 1994. Livro de histórias que retrata o renascer do país depois da assinatura do Acordo de paz.
A Varanda do Frangipani – (romance) Lisboa, Ed. Caminho, 1996. O tema que se encontra subjacente nesta obra é do tráfico de armas, num período inicial de recuperação da guerra.
Contos do Nascer da Terra – (contos) Lisboa, Ed. Caminho,1997
Mar me quer – (novela) 2000. Este livro foi inicialmente incluído na Colecção 98 Mares, no âmbito da Expo 98.
Vinte e Zinco – (romance) 1999. Este livro surgiu de uma iniciativa da Editorial Caminho que visava assinalar o 25º Aniversário do 25 de Abril, estando, assim, relacionado com este tema. Vinte e cinco é para vocês que vivem nos bairros de cimento. Para nós, negros pobres que vivemos na madeira e zinco, o nosso dia ainda está por vir.” (excerto da obra).
O Último Voo do Flamingo – (romance) 2000
Na Berma de Nenhuma Estrada e Outros Contos – (contos) 2001
O Gato e o Escuro – (contos) 2001
Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra – (romance) 2002
Contos do Nascer da Terra - (contos) 2002
O país do queixa andar (crónicas) 2003
O fio das missangas  (contos) 2003
A Chuva Pasmada – (romance) 2004
O Outro Pé da Sereia – (romance) 2006

A CRIATIVIDADE TEXTUAL: MODO DE MOÇAMBICANIDADE
O fascínio que os textos de Mia Couto exercem sobre o leitor radica em quatro componentes fundamentais, que aparecem imbricadas:
1 — A criatividade e inventividade da linguagem, típica de escritores colonizados, terceiro-mundistas, que procuram afirmar uma diferença linguística e literária no interior da língua do colonizador, na esteira de James Joyce (irlandês), João Guimarães Rosa (brasileiro), Kateb Yacine (argelino) ou José Luandino Vieira (angolano).
Especificando a criatividade da linguagem, verifique-se que, a nível da sintaxe e do léxico, assenta, tal como acontece em José Luandino Vieira, na exploração das potencialidades estruturais do português, como da pressão que as estruturas e a fala das línguas africanas, sobretudo do ronga, exercem sobre a norma europeia, contribuindo para o desenvolvimento de uma norma moçambicana. A circunloquialidade das falas populares não deixa de influir nessa língua literária, que flexibiliza a frase e remodela as potencialidades da estrutura.
2 — O realismo no traçado de acções e caracteres, fornece um quadro rigoroso e impressivo (vigoroso) do social e do particular.
3 — A intromissão, de chofre, do imaginário ancestral, do fantástico, que transforma esse realismo quase social num imprevisto realismo animista (a expressão é dos angolanos Henrique Abranches e Pepetela), propenso à aproximação ao realismo mágico sul-americano (Gabriel García Marquez, Carlos Fuentes, etc.), este também decorrente do cruzamento da descrição pormenorizada de ambientes, caracteres e acções com o onírico e a imaginação populares.
4 — O humor, construído através da intriga, de situações e acontecimentos, de personagens e seus nomes, da narração, da linguagem, da enunciação. […] Humor que desdramatiza os episódios mais trágicos (a morte, a guerra, a repressão, etc.) e suaviza ou, pelo contrário, aprofunda a crítica social, ideológica e política.
É esse afeiçoar de linguagens, culturas e humores que Mia Couto entende como o projecto de moçambicanidade: «há este mosaico, não tanto de raças, mas de culturas, das culturas que estão a marcar parte de uma coisa que e ainda só um projecto: a moçambicanidade» (entrevista a Mia Couto in Público, 17-7-1990). (Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 314-318 – adaptado)
BRINCRIAÇÕES
Num dos programas “Conversa afiada”, Maria João Avilez perguntava a Mia Couto se a reinvenção das palavras, que lhe é característica, seria uma forma de exaltar/honrar a miscigenação ou ainda de “arrumar” a língua. O escritor respondeu que o português, sozinho, não consegue transmitir a realidade africana; há que usar as potencialidades da Língua Portuguesa e trabalhá-las. «As alterações da língua portuguesa têm uma lógica que ultrapassa o domínio linguístico e que traduzem uma outra apreensão do mundo e da vida». (Cármen Maciel, “Língua Portuguesa: diversidades literárias – o caso das literaturas africanas”, 2004, http://www.socinovamigration.org/portallizer/upload_ficheiros/L%C3%ADngua%20Portuguesa,%20diversidades%20liter%C3%A1rias.pdf)
  
Mia Couto recria a oralidade […], através de uma língua literária sustentada por uma exuberante criatividade lexical[1] e uma sintaxe que faz a ponte entre a oralidade e a pura invenção, em que o contexto comunicativo, estético, possibilita a partilha da mensagem de ruptura[2]. As marcas fortes da oralidade estão igualmente presentes nas frases proverbiais, que definem uma atmosfera, um estado de espírito ou um saber sombrio[3]. (José de Sousa Miguel Lopes, “Cultura acústica e cultura letrada: o sinuoso percurso da literatura em moçambique” in http://www.catjorgedesena.hpg.ig.com.br/html/textos/miguel_lopes.doc)

 


[1] Alguns exemplos dessa criatividade lexical são apontados por Pires Laranjeira (1993): homenzarrou, depressou-se, fantasiática, carinhenta, esteirados, rebulir, estremungado, tropousar, manifestivo, estremexendo, nuventanias, febrilhante, deslembrara, sozinhidão, pertubabado, gesticalada, irmãodade, exuberrante, inutensílio, tintintilar, entrequando, esmãozinhado, exatamesmo, convidançante, mancha-prazeres, embriagordo, veementindo, atordoído, titupiante, inaposento, administraidor.
[2] É o caso apresentado por Pires Laranjeira (1993) através de alguns exemplos: “todos partiram, um após nenhum”, “o colar que foste dada”, “nem isto guerra nenhuma não é”, “parece está aqui enquanto nem”, “o lugarzinho no enquanto”.
[3] Entre essas frases proverbiais podem referir-se: “quanto tempo demora o tempo”, “a escuridão nos faz nascer muitas cabeças”, “no fundo da latrina não pode haver guerra limpa”, “o homem é como a casa: deve ser visto por dentro” (Laranjeira, 1993).



FORMAÇÃO DE PALAVRAS POR PREFIXAÇÃO
A inovação lexical produzida por Mia Couto, nas suas obras, não vem alterar as normas e regras de funcionamento da Língua. Por outro lado, recria, faz nascer palavras e significados que vêm provar que a Língua Portuguesa está em constante alteração e evolução, uma vez que, ao serem criados novos vocábulos, demonstra-se que a Língua possui uma diversidade inúmera de combinações não exploradas e que, a algumas delas, não estamos ainda sensíveis A Língua é um sistema infinito, daí que possa apresentar todas as oportunidades de reinvenção, recriação e combinação, facilitando o alargamento do léxico.
Verificamos que neste processo de formação de palavras podem existir várias formas de criação:
a) Palavras que usualmente não prefixamos: Mia Couto utiliza um prefixo como em Refaleceu ou Desressuscitado. 
b)Prefixar uma palavra que já é prefixada: por exemplo, formamos, a partir do substantivo comum feitiço o verbo enfeitiçar, Mia constrói o seu contrário e surge o verbo desenfeitiçar
c) A elisão de um prefixo onde, habitualmente empregamos dois: descaminhar no lugar de desencaminhar
d) A troca de prefixos, permanecendo a palavra com o mesmo sentido, como em inavergonhada, em que o prefixo in- substitui o des- de desavergonhada
Conclui-se ainda que, com este processo, é possível evitar construções negativas quando, na verdade, em apenas uma palavra, a negação está implícita na frase. (Ana Margarida Belém Nunes, "A (re)utilização da prefixação em Mia Couto", RUA-L (Revista de Letras da Universidade de Aveiro), nº 19-20, 2002-2003, pp. 85-98. http://www.ii.ua.pt/cidlc/gcl/)
FORMAÇÃO DE PALAVRAS POR AMÁLGAMA
Com a amálgama cria-se um maior número de combinações, jogos de palavras, recursos estilísticos (pleonasmos e metáforas, em maior escala) e, por outro lado, cada palavra passa a conter diversos sentidos, podendo ser entendida como uma pequena “estória”.
Consideramos que a leitura se torna atractiva quando existe este recurso à amálgama, fenómeno também conhecido por “cruzamento, blending ou contaminação”.
Seguindo a terminologia de Maria Helena Mira Mateus (1990: 415), a amálgama não é considerada um processo clássico de formação de palavras, mas contribui para a invenção de novos vocábulos e significados da Língua. Tal como a acronímia, a abreviatura, o empréstimo ou a extensão metafórica, a amálgama resulta de alterações sobre palavras existentes num processo de criação lexical. Nestes casos, as combinações são aleatórias no sentido em que “não é possível predizer as condições em que surgem, nem a forma que tomam, nem o significado que adquirem” (Mateus et al. 1990: 414-415).
Entende-se então que sendo a amálgama um processo de criação, o que Mia faz é, precisamente, criar vocábulos que lhe vão permitir transmitir todos os seus sentidos e/ou sentimentos, não ficando limitado pelo léxico existente, mas servindo-se deste para a sua própria expansão. De facto, este é um processo de inovação lexical que demonstra ser muito inovador, operando-se uma junção de palavras, todas elas conhecidas, mas coordenadas de forma singular, chegando a ser uma marca característica do escritor.
Existem diferentes processos de fazer esta concatenação perfeita de vocábulos que podem ser o resultado da combinação de palavras de diferentes classes gramaticais, obedecendo a diversas formas de sequências: a amálgama pode resultar da sobreposição de sílabas homófonas em fronteira de palavra ou de um truncamento num ou em ambos os elementos. Neste caso, pode aparecer truncada uma sequência mais ou menos longa no final da primeira palavra, ou em ambas. De um modo geral, os segmentos truncados não são sufixos, nem prefixos, nem radicais, isto é, não são unidades morfologicamente reconhecíveis. Muitas vezes, nas formações que são apresentadas, a amálgama resulta de uma fusão entre duas palavras que não se dá no final, nem no início, mas no meio das palavras (acabando por se aproximar da infixação), tornando-se assim, o novo vocábulo uma mistura perfeita dos dois que estiveram na sua origem.
Ainda em relação à classe gramatical das amálgamas, verificámos que estas adquirem a classe gramatical da última palavra por que são compostas. Tomando como exemplo o caso de arrumário, em que os elementos constitutivos são o verbo arrumar e o substantivo comum armário, reparamos que a nova palavra que foi formada assume a categoria gramatical deste último elemento, formando-se assim um novo substantivo. O mesmo acontece em variadíssimos exemplos: cabritroteavaV (cabritoN + trotearV), chamariscoN (chamarizN + iscoN), compaixonasseV (compaixãoN + apaixonarV), fosfogénicosAdj (fósforoN + fotogénicoAdj).
 (adaptado de: Ana Margarida Belém Nunes, “A leitura e des(re)construção das amálgamas de Mia Couto por alunos de PLE”, cadernos de PLE 3, 2004, Universidade de Aveiro. http://www.ii.ua.pt/cidlc/gcl/ e “Um Estudo da Amálgama e do seu Valor Metafórico em Mia Couto”. In: Actas del VI Congreso de Lingüistica General. Vol. 2 Tomo 1, Madrid: Arco Libros, 2007, pp. 1465-1474, http://sweet.ua.pt/~f711/ )
 
Proposta de trabalho:
1. Faça o levantamento de palavras na obra Mar me quer de Mia Couto onde tenha havido PREFIXAÇÃO (citar palavra + contexto) e explique o sentido adquirido.
           (
Prefixos: ante- des- entre- es- im-/in- ir- re- trans-) 
2. Proceda de igual modo relativamente às palavras onde tenha havido AMÁLGAMA e organize os conjuntos obtidos pelas respectivas categorias gramaticais: verbos, substantivos e adjectivos.
 
                                                                                                 

M A R    M  E    Q U E R
Mulata Luarmina e Zeca Perpétuo partilham território de vizinhança, chão de terra tão mais velho que eles, olhando o mar que é sempre quem mais viaja.
Luarmina ensombreada de um qualquer silêncio, que de tão longo parece segredo, entardece todos os dias na companhia de Zeca, ouvindo as histórias que vão povoando a paisagem.
Zeca Perpétuo sonha sempre o mesmo: se embrulhar com ela, arrastá-la numa grande onda que os faça inexistir.
Luarmina foi aprendendo mil defesas para as insistências namoradeiras de Zeca, mas um dia resolve negociar falas e outras proximidades, não em troca de aventuras sonhiscadas de Zeca, mas de suas exactas memórias.
E como diz o avô Celestiano "o coração é uma praia", em que o mar, porque nos quer, acaricia memórias e apazigua ausências.
Avô Celestiano é a sabedoria do tempo. Mas também é o fabricador de sonhos. Por via dos sonhos, ele visita os vivos e conduz, na sombra dos aléns, os destinos e os amores de Zeca e Luarmina.
"O que faz andar a estrada? … o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. … para isso que servem os caminhos. Para nos fazerem parentes do futuro." (Mia Couto, Mar Me Quer)
Teatro Meridional, Maio de 2001, http://www.cenalusofona.pt/edicoes/index.html
http://www.almedina.net/catalog/product_info.php?products_id=4847
A trama narrativa de Mar Me Quer, em forma de novela, tece-se em pano africano com crenças e vivências de gentes moçambicanas que vivem no litoral de Moçambique e usam o mar para lhe roubarem o peixe que os alimenta. E é com o mar que se estabelecem relações de vida e de morte, é o mar que determina esse desenrolar de (a)casos fulcrais para as personagens. Desde logo o título da narrativa, Mar Me Quer, faz-nos desconfiar do decalque e do trocadilho em relação ao mal-me-quer da cantilena amorosa. Decalque justificado por ser uma das manias de Luarmina (uma das personagens principais) essa de desfolhar inúmeras flores ao fim de cada tarde na procura de um amor que lhe havia sido negado, enquanto vai pronunciando as palavras mágicas, como se descosturasse um pano nenhum. Ela e Zeca Perpétuo (a outra personagem principal) são dois pólos antagónicos dramaticamente presentes na construção da vida humana: o mar e a terra; o desejo de amar/ser amado e a impossibilidade de consumar esse amor; o passado e o presente na difícil conjunção de memórias e de sonhos; a dúvida da incompreensão ou do não reconhecimento dos símbolos e a certeza da tradição. Os oito capítulos em que esta estória se constrói outra coisa não são senão memórias que Zeca Perpétuo desfia em troca da ternura de Luarmina, enquanto esta desfolha pétalas de malmequeres na busca do amor perdido. (Fernanda cavacas, “Desfiar memórias como quem vai desfolhando flores (sobre Mar Me Quer, de Mia Couto)” in http://www1.ci.uc.pt/litafro/files_congresso/resumos.htm)
 MAR ME QUER: A OUTRA FACE DA LUA
A obra narra a história de dois vizinhos, já avançados no tempo. Zeca Perpétuo, para conquistar sua vizinha, Luarmina (luar-mina?), vai desfiando, a seu pedido, suas memórias, que ao final acabam entrelaçando-se na história dela, num enovelar de segredos entrançados que se vão sendo revelados ao mesmo tempo, durante a narrativa, ao leitor e ao narrador, resultando num desfecho surpreendente.
A maior parte dos encontros entre as duas personagens se dá num espaço intermediário entre um mundo interior e outro, exterior: a varanda da casa de Luarmina representa uma ponte entre o espaço interno da casa e a realidade fora dela. É ali que a personagem se senta a desfolhar intermináveis flores, num bem-me-quer, mar me quer que aguarda uma qualquer resposta, a realização de desejos enraizados num passado presente.
O título Mar me quer não é apenas uma variação poética dos versos “bem-me-quer, mal-me-quer”, com os quais as moças costumam indagar ao destino a verdade de um possível amor. A formulação insere na obra, já desde o início, a força movente do desejo que reconstrói mundos. Assim como o mar quer a terra e a busca em infinitos e entrecortados abraços, da mesma forma se coloca o desejo do homem pela mulher; também de completude é a relação de luz e sombra ou, se quisermos, razão e intuição. A relação entre as duas personagens centrais espelha o desejo de que se revele a face escura da lua, o lado avesso do homem, seu interior.
Para perpetuar-se, para tornar-se ele mesmo, Zeca Perpétuo necessita ser abraçado pela lunaridade de Luarmina, a vizinha costureira que será responsável por atar nele as duas pontas da vida.
Em Mar me quer, pode se encontrar alguns dos temas recorrentes na obra de Mia Couto, como o amor e a morte, perfazendo uma viagem através de fronteiras nas quais se distinguem e se mesclam as culturas negra e branca. Tudo isso vem embalado por murmúrios de um mar cujas ondulações conduzem a vida e o sonho dos homens.
O texto é composto de oito capítulos. Cada um deles é introduzido por um dos “ditos” do avô Celestiano, muitos deles supostamente baseados em provérbios da nação macua, uma das etnias mais antigas, ao norte de Moçambique. A personagem do avô, um mais velho, guarda a ligação com a herança ancestral na qual estão plantadas as raízes de um povo. Explicitados pelo narrador em primeira pessoa, os saberes dos antigos encontram-se espalhados ao longo de toda a obra.
Ao contrário do avô, a figura do pai é a do homem assimilado, que abandona os antepassados para entrar no “mundo dos brancos”. Essa traição não ocorre impunemente e, em decorrência disso, acaba por sofrer uma grande perda que carregará de arrastão a luz de seus olhos, obrigando-o a voltar-se para dentro de si em busca de antigas formas de conhecimento. Cego, o pai passa a ser venerado pela população local como um adivinho, atraindo a si pescadores que buscam a boa sorte nas pescarias.
A terceira geração que comparece na narrativa é a do filho Zeca Perpétuo, que vem a ser um amálgama das duas culturas – a negra dos antigos, e a branca, estrangeira –, simbolizando a interação, tantas vezes conflituosa, entre dois tempos diferentes; assim, o “antigamente” e a modernidade imbricam-se no presente da narrativa. A mistura de raças é também indiciada pela mulata Luarmina, órfã de rara beleza, que se fixara nas praias do Índico à procura do fio que a conduziria ao seu destino. É esse chão de mestiçagem cultural que torna possível o sonho, elemento utópico que torna-se o eixo fundamental da narrativa: “Quando não somos nós a inventar o sonho, ele é que nos inventa a nós.”
Moçambique é um território desenhado por muitas fronteiras que se mesclam chão a dentro, mar a fora, dando ao país um contorno multifacetado. Assim como a colonização portuguesa não teve forças para impor uma soberania no plano político – a ocupação do território moçambicano atingiu apenas uma estreita faixa no litoral sul, deixando intactos o interior e o norte do país –, também no plano cultural não conseguiu aniquilar as culturas das nações locais, dando origem a um rico mosaico cultural do qual pode nascer a novidade, sonho diurno a resgatar as bases de uma identidade necessariamente híbrida.
A obra de Mia Couto, no seu conjunto, revela a tentativa de delinear o rosto de Moçambique. Nela, o país é focalizado por personagens que, sem poderem dar conta das mudanças dramáticas da história, reinventam o cotidiano, sobretudo a partir de uma linguagem inovadora que tenta apontar para um devir em que se mesclam utopias e sofrimentos, muitas vezes transfigurados em maravilha. (Ana Claudia da Silva, “Mar me quer: a outra face da lua” in Via Atlântica nº 2 Julho 1999, http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via02/via02_21.pdf)
MAR ME QUER OU O CORAÇÃO É UMA PRAIA
Em Mar me Quer, obra editada aquando da última Exposição Mundial, em Lisboa 1998, e recentemente também em Moçambique, configura-se como tema central a relação do homem com o seu destino, mais precisamente, do pouco que sobre este podemos saber, da distância irremediável entre o que reclamamos e reconhecemos como nosso e aquilo que nos é dado viver.
Zeca Perpétuo e Luarmina, personagens à volta das quais se tece o conto, surgem-nos como peregrinos a caminho de um outro mundo. São-nos apresentados «a meio» da vida, a «meio» de um trajecto, de um percurso investido de um significado simbólico – ambos já ultrapassaram o seu tempo útil de trabalho e buscam re-encontrar-se agora, que deram pela presença um do outro. Luarmina, ancorada ao passado, ao amor perdido, à vida que não viveu, aos filhos que não teve, presa à realidade fantasiada e por isso nunca vivida porque nunca investida, é uma mulher triste, uma personagem dormente, presa a uma relação inacabada, suspensa. Contrariamente, Zeca Perpétuo vive para o presente, reinventando a realidade através do sonho, «ensinando o céu a sonhar», recriando a vida através do amor. As relações que as duas personagens estabelecem com as restantes estão, à partida, fragilizadas: a mãe de Luarmina morre de infelicidade pela beleza física da filha, «A mãe morreu pouco depois, não devido da viuvez, mas por causa da beleza da filha»; o pai de Zeca Perpétuo ilustrando todo um percurso de perdição.
As personagens revelam-nos a desagregação dos valores colectivos sob a pressão do tempo, a maternidade como valor principal na sobrevivência da sociedade, «Ela [Luarmina] queria ser outra coisa, queria crescer de si mais gente, ter filhos, nascer-se em outras vidas», o acto de sonhar como desejo de evasão e busca de uma outra realidade que não aquela de um país, Moçambique, ainda há bem pouco tempo palco de guerra, «Quando não somos nós a inventar o sonho, é ele que nos inventa a nós». Esta realidade só pode ser reabilitada através do sonho, onde o narrador oferece um corpo de personagens que não se conformam com a mesma «Me faz falta o sonho, tudo quanto queria era sonhar»; os sonhos surgem como a maneira mais profunda de conhecer o passado, «Neles, tais novos Argos, nós penetramos e ultrapassamos camadas e camadas duma outra água, inominável. Neles, unicamente podemos ver e captar os tesouros escondidos no seu fundo, como no fundo dum abismo, intangíveis, invioláveis. Recuperáveis somente nestes momentos do sono. Aí, unicamente temos uma outra força de visão, um outro poder, que é ignorado, recusado na vida acordada e quotidiana»[1]. É o ter de novo o que estava unicamente perdido; é igualmente viver o futuro inimaginável, mas que recolhe todos os sonhos e esperanças. O erotismo e a sedução feminina latente nas obras do autor, «Me entornei na toalha da água e fechei os olhos igual como ela. Minhas mãos fingiram ser caracóis, lesmas babadoiras lavrando nas coxas de Luarmina», ou «Me deixa sossegada, Zeca. Não vê que eu já não desengomo lençol?». Na repetição do pedido de contar estórias, estórias de vida, há como que «um indício, válido para o conjunto da obra, de que a emoção do sujeito, nostalgia como resultado de um luto, é condicionante da visão das coisas que a sua história oferece». E é essa nostalgia, unida a um imponderável sentimento de frustação, que nos leva a acreditar que pelos sonhos, pelas estórias sonhadas, conhecemos mais da nossa vida do que julgávamos conhecer na vida acordada.
A esperança e a crença nos espíritos, no Além, a convocação mágica do real, o relato de gestos rituais de aproximação ao sagrado, estão singularmente retratadas nas personagens Henriquinha, mulher de Zeca, e de seu pai, Agualberto. Ela, caracteriza-se por uma apetência consubstanciada na capacidade de sonhar, de olhar para o Além e o abismo surge como uma designação concreta para a morte, a outra Vida. A sua dança estonteante no cimo da Duna Vermelha, tanto pode exprimir a certeza da existência do Além, libertação das forças mágicas que dormitam no interior do ser, como também traduzir apenas a confiança e a esperança do ser humano, num mundo desajustado. A sua reencarnação em pássaro, uma gaivota, ave marinha, transforma-a numa continuação de algo, numa sobrevivência perante algo, que a libertará, «Empurrei-a. Não escutei nem grito nem baque de tombo, vindos das rochas em baixo. Apenas estridência de gaivota roçando o barranco». Nele, vivendo a espantosa revelação da «existência das coisas em si», reconhece-se a sacralidade das mesmas, do Universo. As oferendas deitadas ao mar, símbolo de vida, morte e regeneração, resumem todo um tempo e um espaço que se querem sagrados. A aceitação pacífica da morte é-o porque vista pelo lado da tradição. A demorada despedida trai todo o esforço de racionalização para quem se coloca do lado do corpo, esse mesmo corpo que, chegada a sua hora, calmamente se vai despedindo em cada símbolo africano. A morte surge-nos como a mais directa e importante mensageira da transcendência; o encontro da personagem com o seu ser passa pela descoberta da relação justa com a Natureza e pela fidelidade a determinados valores da tradição. Agualberto Salvo-Erro aceita a morte como uma «navegação», entrando no mar, retorno ao elemento original, fonte e símbolo da vida, «Agora vou para o outro lado do mar».
«Quem procura a sua verdade, não ignorando a ambivalência de sentimentos e impulsos por que se pauta a nossa complexa humanidade, maculada, mas distinguida pelo anelo de uma pureza e integridade que a excedem, erigisse em símbolo privilegiado, o elemento que, identificando-se com a origem da vida, a água, é meio de purificação e regeneração, detendo um poder soteriológico»[2]. Agualberto entrega o seu corpo ao mar e tem como referência o seu horizonte. A sua rota está definida por essa linha que nunca se fecha e que, se é separação, é-o também abertura, acesso (o Além).
Tem-se, pois, a percepção de um real «imaterial», fluído como as águas, perdido no seu curso incessante. Por essa razão, os dois mundos comunicam entre si por meio de sinais e projectam os seres nesse Além que só o horizonte pode prometer. A água convida à contemplação e a imagem formada é sempre aquela do sonho: a figura de uma mulher, Luarmina, ideal comum a Zeca Perpétuo e seu pai, que perfigura a visão do todo inalcançável. Há como que a ressonância de um sonho, a imagem de uma beleza feminina que tentou dar solidez ao mundo vazio do exterior. Luarmina é a mediadora entre o homem e o universo, «l’ image même du secret, des grands secrets de la nature»[3]. A anima, o arquétipo do feminino ou a feminilidade inconsciente do homem está no mar «E, conduzido pelo amor, o homem percorrerá esse longo caminho cujo fim é a própria unidade, o chegar a ser de verdade ele próprio»[4]. Zeca Perpétuo verte-se de si mesmo, encontrando-se, «Meu pai afinal, me estava dizer o quê? Que trazemos oceanos circulando dentro de nós? Que há viagens que temos que fazer só no íntimo de nós?» ou, como sonha o narrador «como se o mar ensinasse, por fim, minhas lembranças a adormecer, como se a minha vida aceitasse o supremo convite e fosse saindo de mim em eterna dança com o mar».
Poeta da água, Mia Couto apoia-se nela sempre que tematiza experiências de vida de grande intensidade emocional. É-o, à maneira de Cinatti, «Orvalhado pelo mistério, por exemplo, numa recuperação do valor simbólico de regeneração e purificação da água, manifestação da graça divina ou anúncio de uma realidade em geral evanescente, mas pura, por que se anseia»[5]. É Teixeira de Pascoaes que nos revela «Somos uma onda, que é um atlântico banhando todas as praias»[6]. O Poeta moçambicano evoca o Índico dando vida e sentido ao provérbio macua «O coração é uma praia».
O movimento da água é a metáfora de um mundo que nunca é, de um mundo que adquire o aspecto virtual. Quem lhe dá «forma» é o Poeta, através da capacidade de sonhar. Por detrás das palavras, há sempre uma indagação, uma procura, uma força renovadora da água, portanto da vida. (Maria João Coutinho, “O Mundo Ficcional de Mia Couto – Mar me Quer ou O coração é uma praia”in http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=635)
PROPOSTA DE TRABALHO:

1. Elabore uma dissertação sobre o seguinte tema: as várias identidades de Luarmina[7]
2. Disserte acerca das possibilidades narrativas/interpretativas de MAR ME QUER decorrentes da desconstrução do nome próprio LUARMINA
3. Reconte a estória de Agualberto Salvo Erro.




[1] Dalila Pereira da Costa, Os Sonhos, Porta do Conhecimento, Porto, Lello & Irmão, 1991, p. 7.
[2] Soteriologia: parte da teologia que trata da salvação do Homem.
Maria João Borges, Em Torno do Conceito de"Poesia Pura": Cinatti, Sophia e Eugénio de Andrade, p. 237, citando Alain Gheerbrant, Jean Chevalier, Dictionnaire des symboles, pp. 374, 382.

[3] André Breton, Arcane, 17, Paris, s.d., p.93.
[4] Maria Zambrano, O Homem e o Divino, Lisboa, Relógio d' Água, 1995, p.236.
[5] Maria João Borges, pp. 236-237.
[6] Teixeira de Pascoaes, O Homem Universal, Lisboa, Ed. Europa, 1937, p.87.
[7] A mulher bela (Luarmina quando jovem); Luarmina freira; Luarmina gorda e mulata; Luarmina sereia; e a mulher que desejava ter filhos.