5.3.12

José Craveirinha - «corpus» literário

JOSÉ CRAVEIRINHA



Índice

Vida e obra de José Craveirinha
Depoimento autobiográfico
Interpretação do mito pessoal de Craveirinha
As fases poéticas
Características poéticas
Antologia poética comentada
Acerca do livro Maria





VIDA E OBRA DE JOSÉ CRAVEIRINHA

Lourenço Marques (actual Maputo), 1922 - 2003

Poeta, ensaísta e jornalista. Nasceu em Lourenço Marques (hoje Maputo), filho de pai branco (algarvio) e de mãe negra (ronga). Sendo o pai um modesto funcionário e, ao tempo da opção, já reformado, José Craveirinha teve de ser sacrificado, ficando pela instrução primária, para que seu irmão mais velho fizesse o liceu. Mas Craveirinha, que então já lia muito, influenciado por seu pai, grande apaixonado de Zola, Victor Hugo e Junqueiro, passa a fazer em casa o curso que o irmão fazia no liceu, acompanhando as lições que este ia tendo. Assim, os seus professores foram-no sem o saber ou sabendo-o só mais tarde. Iniciou a sua actividade jornalística no Brado Africano, mas veio a colaborar depois no Notícias, onde foi também revisor, na Tribuna, no Notícias da Beira, na Voz de Moçambique e no Cooperador de Moçambique. Neste último publicou uma série de artigos ensaísticos sobre folclore moçambicano que constituem uma importante contribuição para o tema. Mas foi na poesia que Craveirinha se revelou como um destacado caso nas letras de língua portuguesa, afirmando-se "a incomensurável distância - o maior poeta africano de expressão portuguesa" (Rui Knopfli). Estrear-se-ia como poeta, também no Brado Africano de Lourenço Marques, em 1955, seguindo-se a publicação de poemas seus no Itinerário da mesma cidade e em jornais e revistas de Angola, Portugal (nomeadamente em Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império) e Brasil, principalmente. Figura em todas as antologias de poesia africana de língua portuguesa que desde então se publicaram e também em muitas antologias de poesia africana de todas as línguas. A sua estreia em livro deu-se com Chigubo, editado em Lisboa em 1964 pela Casa dos Estudantes do Império e logo apreendido pela PIDE, que o utilizou como prova nos processos de que foi vítima durante o período em que esteve preso (na célebre cela 1 com Malangatana e Rui Nogar, entre outros, entre 1965 e 1969). Antes, em 1962, uma colectânea de poemas seus com o título de Manifesto obtivera o Prémio Alexandre Dáskalos da Casa dos Estudantes do Império. Obteria depois numerosos prémios em Moçambique, Itália (o Prémio Nacional de Poesia e outros) e Brasil, além do Prémio Lotus da Associação de Escritores Afro-Asiáticos, de cujo júri passou depois a fazer parte. Foi o Prémio Camões de 1991. Está traduzido em várias línguas e é grande a relação de estudos que à sua poesia foram dedicados. Usou também os nomes: Nuno Pessoa, Mário Vieira, J. C., J. Cravo e José Cravo. (Adaptado de Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998. Disponível em: http://www.iplb.pt/pls/diplb/!get_page?pageid=402&tpcontent=FA&idaut=1696130&idobra=&format=NP405&lang=PT)



Obras publicadas:

Chigubo. Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1964 (com treze poemas); a 2ª Edição foi rebaptizada Xigubo, com vinte e um poemas (Maputo: INLD, 1980).

Cantico a un dio di catrane. Milano: Lerici, 1966. Edição bilingue com tradução e prefácio de Joyce Lussu.

Karingana ua karingana. Lourenço Marques: Académica, 1974. 2ª Edição, Maputo: INLD, 1982. 3ª Edição, Maputo: AEMO, 1996.

Cela 1. Maputo: INLD, 1980 (Poemas da prisão, ao jeito dos que escreveram os angolanos António Jacinto e António Cardoso).

Izbrannoe. Moskva: Molodaya Gvardiya, 1984.

Maria. Lisboa: ALAC (África, Literatura, Arte e Cultura), 1988 (Poemas dedicados à falecida mulher, selecção de entre muitas e muitas dezenas, conforme informação do autor.)

Babalaze das hienas. Maputo: AEMO, 1996.

Hamina e outros contos. Maputo: Ndjira, 1997.

Maria. Vol.2. Maputo: Ndjira, 1998.

Poemas da Prisão, Lisboa, Texto Editora, 2004.

Poemas Eróticos. Moçambique Editora/Texto Editores, 2004 (edição póstuma, sob responsabilidade de Fátima Mendonça)



Pode considerar-se José Craveirinha como o poeta nacional moçambicano, no sentido em que Camões o é para Portugal. De certo modo, com a sua poesia frequentemente extensa, narrática, glosando temáticas da dominação colonial, da identidade nacional e de lirismo amoroso ou irónico, Craveirinha acaba por forjar textos que têm marcas épicas, que funcionam como relatos concentrados ou alusões à gesta do povo de Moçambique. (Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 278)





DEPOIMENTO AUTOBIOGRÁFICO
(Janeiro de 1977)

Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto [que significa domingo em ronga, língua da capital]. Pela parte de minha mãe, claro. Por parte do meu pai fiquei José. Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres.

Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato...

A seguir fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros.

Quando meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmão.

E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.

A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra.

Nasci ainda mais uma vez no jornal O Brado Africano. No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noémia de Sousa.

Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.

Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por causa de minha mãe, só resignação.

Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta.

Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.

Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse País, muitas vezes altas horas da noite.

(in Antologia da nova poesia moçambicana, org. Fátima Mendonça e Nelson Saúte, AEMO, 1989, p. viii-x. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via05/via05_02.pdf)





INTERPRETAÇÃO DO MITO PESSOAL DE CRAVEIRINHA

José João Craveirinha nasceu no dia 28 de Maio de 1922, na periferia da antiga Lourenço Marques, actual Maputo, numa modesta casa de madeira e zinco. Todas as suas vivências estão ligadas ao bairro da Mafalala, um bairro pobre na periferia suburbana da cidade […]. É proveniente duma família modesta. O seu pai era branco, natural de Aljezur, no Algarve; ficou radicado em Moçambique, tendo-se integrado no meio humilde suburbano. A sua mãe era uma negra ronga, nascida em Michafutene, arredores de Lourenço Marques (hoje Maputo). O poeta passou os primeiros tempos da sua infância inserido no meio tradicional moçambicano, chegando a andar às costas da sua mãe, conforme é tradição em África. Ficou órfão de mãe quando tinha apenas cinco anos de idade. Foi criado com o pai e a madrasta, senhora com um certo estatuto social que tratava do enteado como se fosse seu próprio filho. […]

Após a análise dos registos que efectuei com a finalidade de descobrir o mito pessoal de José Craveirinha, cheguei à conclusão de que existe um conflito latente na mente deste conceituado escritor, devido ao facto de ser mulato. Sendo ele filho de pai branco e mãe ronga, tornou-se um acérrimo defensor da raça negra, acalentando ideais políticos que tinham em vista a independência de Moçambique. Na poesia, da qual se servia como ferramenta para fazer as suas reivindicações, apercebi-me das metáforas e das palavras-chave que me levaram a chegar às minhas conclusões.

As palavras antagónicas noite e dia são as palavras que aparecem com mais frequência quando fala de referências temporais. Têm praticamente o mesmo número de registos, facto que vem realçar o conflito latente da sua condição de mulato. Revela ser uma pessoa muito triste e melancólica, porque mesmo quando se refere ao sol, não é para falar da sua luz e do seu brilho, mas sim para falar dum sol abrasador, dum sol que vaza calor e que bate em cheio nas cabeças das pessoas e dos telhados de zinco das casas, ou então para falar do sol-posto. Quando pretende falar das manhãs, fala dum clarear do dia com muita cacimba, ou duma manhã ainda escura e fria, como se desejasse ocultar o brilho do sol. A ausência do brilho do sol é um indício da falta de alegria no poeta.

Na análise das cores, verifiquei que o branco e o preto são as cores mais mencionadas pelo poeta, o que me leva a interpretar que no seu inconsciente está bem presente o fantasma das suas origens. O facto de mencionar muitas vezes estas cores e de fazer uso frequente das referências temporais noite e dia, fazendo por vezes algumas alusões a manhãs nebulosas de cacimba, cria uma certa analogia com o facto de ser mestiço, fruto do cruzamento da raça branca com a raça negra.

O poeta José Craveirinha faz muitas alusões aos negros e a África, prova de que o poeta está muito ligado às suas origens por parte da sua mãe, que era negra, e ao conceito de moçambicanidade. Nos seus poemas, Craveirinha defende os negros por serem um povo dominado pelos brancos num regime colonial, o que para ele é de uma cruel injustiça. Vai contra os seus princípios de justiça, ver o seu irmão negro ser tratado como uma besta, ou pior ainda, como ninguém. O poema “Ninguém” do livro Karingana ua Karingana é um grito de revolta por esta injustiça e pode servir de exemplo.

José Craverinha é contra as desigualdades sociais, contra o regime colonial e contra a ideia da civilização. Pensa que o desenvolvimento das cidades com as suas “florestas” de betão armado, as estradas de alcatrão, os laboratórios onde se fabricam bombas atómicas e o ruído ensurdecedor dos grandes motores contribuem para degradar ainda mais o homem. […] Escreveu inúmeros poemas contra o avanço da tecnologia e da sociedade civilizada, em que o branco domina o negro.

O emprego de metáforas de animais nos seus poemas é bastante frequente. Craveirinha demonstra muito bem a sua revolta e o seu estado de espírito através do uso destas metáforas. O grande número de registos referentes às aves, mostra claramente o seu desejo de se libertar dos afrontamentos e de todo o mal-estar causados pela sociedade, que para ele é uma sociedade conspurcada. Esse mal-estar é muitas vezes caracterizado pela referência a alguns insectos como a mosca e o moscardo, animais insuportáveis que só nos causam desconforto e repugnância. A formiga representa para Craveirinha a vida organizada e industrializada das grandes cidades, a que algumas vezes designa de polvo, para melhor dar a ideia de um grande monstro. As tradições orais também estão bem presentes no uso das metáforas de animais, com as figuras do lobo e da hiena. Enquanto que os europeus criaram a figura do lobo mau para as histórias tradicionais, nas histórias africanas aparece a figura da quizumba (hiena) com as suas fortes mandíbulas amarelas e assustadoras. Craveirinha põe assim mais em destaque as suas tradições orais de origem africana, pois faz mais referências às quizumbas (hienas) do que aos lobos. Quando se refere ao lobo pretende falar do homem mais perigoso que há, que é o homem civilizado, exprimindo assim os seus sentimentos relativamente à civilização.

O poeta faz muitas referências a algumas partes do corpo, especialmente às mãos e aos olhos. Este facto revela que Craveirinha é um homem atento a tudo o que o rodeia e que luta pelos ideais a que aspira. Ao falar das várias partes do corpo põe em evidência o facto de ser uma pessoa bastante sensual, especialmente quando dá destaque às belas mulheres com «corpos feitos de bambus em brasa...» que «vêm de pés nus na terra amorosa...» e que «o criss dá-lhes ancas novas, olhos mais belos que estrelas, mãos gráceis de fadas de conto.» (José Craveirinha, Hamina e Outros Contos, Lisboa, Caminho, 1998, p.57). Tem uma particular preferência pela mulher mulata, jovem e sensual, pois nas suas poesias alude com alguma frequência a este tipo de mulher.

A referência que faz à cor vermelha e ao emprego de algumas metáforas de animais felinos, como o gato-bravo e o leopardo, só vem reforçar ainda mais esta ideia. A cor vermelha é a cor que está mais ligada não só à vontade de transgredir, mas também à sedução, à sensualidade, ao erotismo e ao pulsar da libido. As metáforas dos felinos põem em destaque os seus instintos sexuais mais recônditos.

Resumindo, o mito pessoal de José Craveirinha baseia-se num conflito latente que tem a ver com as suas origens e, por conseguinte, com o problema da mestiçagem. Este fantasma fez soltar outros fantasmas que criaram em Craveirinha uma revolta contra o comportamento do europeu em relação ao africano e contra a sociedade demasiado civilizada, tendo-o levado a viver num bairro humilde na periferia da cidade de Maputo e a identificar-se mais com a raça negra. No entanto, também foram estes mesmos motivos que o levaram a usar a poesia como meio de reivindicação para lutar pelos seus ideais. (Maria do Rosário Pires Poças, http://www.univ-ab.pt/sda/mepi/pdfs/pocas_resumo.pdf)





AS FASES POÉTICAS

1ª fase: de Neo-realismo, implicando uma tradição poética narrativizada, de que é exemplo flagrante a primeira parte do livro Karingana ua karingana, justamente datada de 1945-50 e intitulada «Fabulário». Os poemas têm versos curtos. Cada poema é como que um pequeno quadro pictórico (em geral, uma cena, um ambiente, um tema). O fabulário alude, por outro lado, à tradição popular, ancestral, tribal, de contar fábulas, aqui com personagens humanas dentro, emersas em dramas sociais e pessoais. Há uma denúncia em moldes alusivos, expositivos, em linguagem descarnada, contida, não propriamente contundente. Por outro lado, a composição do tema, a imagética, porque voltadas para uma finalidade unívoca, baseadas em meios simples, apresentam-se sem grande elaboração, denunciando uma fase cronológica ainda algo incipiente, privilegiando a mensagem sobre os meios expressivos.

Um exemplo é o poema que dá o título ao livro publicado em Itália:



Cântico a um deus de alcatrão

Ao
António Bronze



Máquina começou trabalhar
com sol
com chuva
com farinha e feijão
máquina começou abrir chão.

Lua escondeu coração
saiu ouro
saiu pedra de lapidação
saiu barco cheio de máquina gente no porão
saiu notícia de menino morto boneco de carvão
saiu Cadillac novo de patrão.

Máquina começou trabalhar
com farinha de pilão
nasceu milho
nasceu machamba de feijão
nasceu máquina grande
nasceu pequenino deus de alcatrão.

Máquina começou trabalhar
máquina está trabalhar
até um dia enraivar
com farinha de pilão!...



2ª fase: Negritude, expressa com nitidez em Chigubo (1964) e Cantico (1966). Os poemas têm versos de média ou mais extensa medida. Os predicadores e os predicatários e predicatados, em geral, são negros. A revolta e a denúncia agressiva pontificam. O «Manifesto» ou o «Grito negro» mostram como a cor e a raça negras (isto é, o grupo étnico) comandam a visão dos predicadores, que se enaltecem e têm orgulho nas suas raízes negras, africanas.

3ª fase: Moçambicanidade ou identidade nacional, de que as 2ª e 4ª partes de Karingana ua karingana, respectivamente intituladas «Karingana» e «Tingolé (Tindzolé)», são emblemáticas, e que se caracteriza pela expansividade dos poemas mais longos e dos muito longos, em que o humor e a ironia desempenham papel decisivo, sendo bastante clara a interrogação sobre a identidade dos predicadores, suas origens e herança cultural. A «Carta ao meu belo pai ex-emigrante» demonstra todas essas possibilidades de interrogar-se e interrogar o que é ser-se moçambicano.

4ª fase: de Libertação, de que resultaram dois livros diferentes, sendo um de poemas da prisão, escrito ainda antes da Independência, em reclusão, mas paradoxalmente respirando liberdade. Anote-se um exemplo de absoluta liberdade sob o peso do cadafalso: «Foi assim que eu subversivamente / clandestinizei o governo / ultramarino português». O outro livro, de homenagem à falecida mulher, é elegíaco como o anterior, de textos curtos, expondo um sentimento, um ambiente, uma ideia, um episódio, com circunspecção, concretude e lirismo, por vezes com pormenores que iluminam o tom de cerrado desânimo.

É nos poemas de Cela 1 que explodem os adjectivos craveirínhicos na sua opulência paradoxal: «E a consternação / deste nervo incendeia as cruas / unhas imperecíveis na desbotada ganga / da noite ultriz voluptuosa / a pão e água». Como se o luxo adjectival superasse a solidão celular.

Depois, mantém-se a irreverência que o leva a escrever um poema como «Tanjarinas» (1982-84), de frontal crítica ao status quo político e administrativo, à corrupção e à guerra.



CARACTERÍSTICAS POÉTICAS

Ana Mafalda Leite, no seu livro sobre a obra de Craveirinha, indica elementos e recursos típicos do poeta: estrofes de grande dimensão; dramatização; poder declamatório; exclamação; interjeição; frases dialogais; estrutura enumerativa contínua; repetição; redundância; paralelismo; anáforas múltiplas; intensidade panegírica; modos verbais imperativos e exortativos; tom polémico e agressivo; verbos ser; ter; dizer (na 1ª pessoa do indicativo): núcleo performativo (cf. A poética de José Craveirinha, Ana Mafalda Leite, Lisboa, Vega, 1991, pp. 30 e 33).

As características gerais da obra de Craveirinha podem resumir-se, então, do seguinte modo: Neo-realismo; narratividade; adjectivação luxuriante; ironia; elementos surrealizantes; Negritude; moçambicanidade.

Os temas fundamentais são: escravatura, raça, crítica à civilização ocidental, vitalismo, sensualidade, revalorização da tradição negra, culto da Natureza, animização, etc., com recurso aos modelos da Black Renaissance, Négritude e Neo-realismo, no intuito de construir uma identidade poética moçambicana.

(Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 278-281)





ANTOLOGIA POÉTICA COMENTADA

Índice

"Manifesto"
"Hino à minha terra"
"Xigubo"
"África"
"Grito negro"
"Sangue da minha mãe"
"Ao meu belo pai ex-emigrante"
"Quero ser tambor"
"Sia-vuma"
"Saborosas tanjarinas d'Inhambane"

Acerca do livro Maria

"Villa Algarve (1ª versão)"
"Villa Algarve (2ª versão)"
"Maria (salmo inteiro)"
"Jacarandás de saudade"
"Pablo Picassamente"
"Adágio"
"Em casa"
"Mesa grande"
"O velho dos vasos"
"Pressentimento"



Poemas do livro Xigubo:

Escolhendo o «Manifesto» (poema programático; posição originária; assunção ideológica e cultural), temos o louvor do corpo negro, realçando particularidades morfológicas; louvor da cultura tradicional, étnica; exaltação do predicador (sujeito); marcação topográfica, geográfica, cultural, do espaço moçambicano; Negritude; inspiração no modelo dos manifestos políticos ou culturais, por exemplo, dos manifestos surrealistas ou do Modernismo brasileiro. (Laranjeira:1995, p.281)

MANIFESTO

Oh!
Meus belos e curtos cabelos crespos
e meus olhos negros como insurrectas
grandes luas de pasmo na noite mais bela
das mais belas noites inesquecíveis das terras do Zambeze.

Como pássaros desconfiados
incorruptos voando com estrelas nas asas meus olhos
enormes de pesadelos e fantasmas estranhos motorizados
e minhas maravilhosas mãos escuras raízes do cosmos
nostálgicas de novos ritos de iniciação
dura da velha rota das canoas das tribos
e belas como carvões de micaias
na noite das quizumbas.
E a minha boca de lábios túmidos
cheios da bela virilidade ímpia de negro
mordendo a nudez lúbrica de um pão
ao som da orgia dos insectos urbanos
apodrecendo na manhã nova
cantando a cega-rega inútil das cigarras obesas.

Oh! E meus belos dentes brancos de marfim espoliado
puros brilhando na minha negra reencarnada face altiva
e no ventre maternal dos campos da nossa indisfrutada colheita de milho
o cálido encantamento selvagem da minha pele tropical.

Ah! E meu
corpo flexível como o relâmpago fatal da flecha de caça
e meus ombros lisos de negro da Guiné
e meus músculos tensos e brunidos ao sol das colheitas e da carga
e na capulana austral de um céu intangível
os búzios de gente soprando os velhos sons cabalísticos de África.

Ah!
o fogo
a lua
o suor amadurecendo os milhos
a grande irmã água dos nossos rios moçambicanos
e a púrpura do nascente no gume azul dos seios das montanhas.

Ah! Mãe África no meu rosto escuro de diamante
de belas e largas narinas másculas
frementes haurindo o odor florestal
e as tatuadas bailarinas macondes
nuas
na bárbara maravilha eurítmica
das sensuais ancas puras e no bater uníssono dos mil pés descalços.

Oh! E meu peito da tonalidade mais bela do breu
e no embondeiro da nossa inaudita esperança gravado
o tótem mais invencível tótem do Mundo
e minha voz estentórea de homem do Tanganhica,
do Congo, Angola, Moçambique e Senegal.

Ah! Outra vez eu chefe zulo
eu azagaia banto
eu lançador de malefícios contra as insaciáveis
pragas de gafanhotos invasores.
Eu tambor
Eu suruma
Eu negro suaíli
Eu Tchaca
Eu Mahazul e Dingana
Eu Zichacha na confidência dos ossinhos mágicos do tintlholo
Eu insubordinada árvore de Munhuana
Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes
Eu caçador de leopardos traiçoeiros
E xiguilo no batuque.
E nas fronteiras de água do Rovuma ao Incomáti
Eu-cidadão dos espíritos das luas
carregadas de anátemas de Moçambique



Em «Hino à minha terra», encontramos um bom exemplo da exacerbação da referencialidade toponímica (cerca de 60 topónimos), demarcando a territorialidade da terra moçambicana: simbolização do país (do pré-país); louvor da cultura étnica, do homem natural; Moçambicanidade: «áfrico País». Note-se o surgir, por duas vezes, da palavra «País» maiusculada, na época em que Moçambique era colónia, subvertendo o estatuto administrativo, logo, político, do território, criando, assim, um espaço imaginário novo. (Laranjeira:1995, p.281)



HINO À MINHA TERRA

O sangue dos nomes
é o sangue dos homens.
Suga-o tu também se és capaz
tu que não nos amas.



Amanhece
sobre as cidades do futuro.
E uma saudade cresce no nome das coisas
e digo Metengobalame e Macomia
e é Metengobalame a cálida palavra
que os negros inventaram
e não outra coisa Macomia.

E grito Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E torno a gritar Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E outros nomes da minha terra
afluem doces e altivos na memória filial
e na exacta pronúncia desnudo-lhes a beleza.
Chulamáti! Manhoca! Chinhambanine!
Morrumbala, Namaponda e Namarroi
e o vento a agitar sensualmente as folhas dos canhoeiros
eu grito Angoche, Marrupa, Michafutene e Zóbuè
e apanho as sementes do cutlho e a raíz da txumbula
e mergulho as mãos na terra fresca de Zitundo.
Oh, as belas terras do meu áfrico País
e os belos animais astutos
ágeis e fortes dos matos do meu País
e os belos rios e os belos lagos e os belos peixes
e as belas aves dos céus do meu país
e todos os nomes que eu amo belos na língua ronga
macua, suaíli, changana,
xitsua e bitonga
dos negros de Camunguine, Zavala, Meponda, Chissibuca
Zongoene, Ribáuè e Mossuril.
– Quissimajulo! Quissimajulo! – gritamos
nossas bocas autenticadas no hausto da terra.
– Aruángua! – Responde a voz dos ventos na cúpula das micaias.

E no luar de cabelos de marfim nas noites de Murrupula
e nas verdes campinas das terras de Sofala a nostalgia sinto
das cidades inconstruídas de Quissico
dos chindjiguiritanas no chilro tropical de Mapulanguene
das árvores de Namacurra, Muxilipo, Massinga
das inexistentes ruas largas de Pindagonga
e das casas de Chinhanguanine, Mugazine e Bala-Bala
nunca vistas nem jamais sonhadas ainda.
Oh! O côncavo seio azul-marinho da baía de Pemba
e as correntes dos rios Nhacuaze, Incomáti, Matola, Púnguè
e o potente espasmo das águas do Limpopo.
Ah! E um cacho das vinhas de espuma do Zambeze coalha ao sol
e os bagos amadurecem fartos um por um
amuletos bantos no esplendor da mais bela vindima.

E o balir pungente do chango e da impala
o meigo olhar negro do xipene
o trote nervoso do egocero assustado
a fuga desvairada do inhacoso bravo no Funhalouro
o espírito de Mahazul nos poentes da Munhuana
o voar das sécuas na Gorongoza
o rugir do leão na Zambézia
o salto do leopardo em Manjacaze
a xidana-kata nas redes dos pescadores da Inhaca
a maresia no remanso idílico de Bilene Macia
o veneno da mamba no capim das terras do régulo Santaca
a música da timbila e do xipendana
o ácido sabor da nhantsuma doce
o sumo da mampsincha madura
o amarelo quente da mavúngua
o gosto da cuácua na boca
o feitiço misterioso de Nengué-ua-Suna.

Meus nomes puros dos tempos
de livres troncos de chanfuta umbila e mucarala
livres estradas de água
livres pomos tumefactos de sémen
livres xingombelas de mulheres e crianças
e xigubos de homens completamente livres!

Grito Nhanzilo, Eráti, Macequece
e o eco das micaias responde: Amaramba, Murrupula,
e nos nomes virgens eu renovo o seu mosto em Muanacamba
e sem medo um negro queima as cinzas e as penas de corvos de agoiro
não corvos sim manguavavas
no esconjuro milenário do nosso invencível Xicuembo!

E o som da xipalapala exprime
os caninos amarelos das quizumbas ainda
mordendo agudas glandes intumescidas de África
antes da circuncisão ébria dos tambores incandescentes
da nossa maior Lua Nova.





O POEMA “HINO À MINHA TERRA” representa um dos textos fundadores da literatura moçambicana. Foi escrito entre 1950 e 1964, isto é, naquele momento crucial da existência das letras do país – na fase da sua própria constituição. O texto é excepcional por uma celebração visceral de Moçambique e da África, como um manifesto da singularidade e identidade do país e do continente. Ao mesmo tempo trata-se de um marco radical no que toca à emancipação da literatura moçambicana do ponto de vista da língua. Quer dizer, os setenta e nove versos do poema contêm perto de oitenta palavras de origem autóctone, nomeadamente na língua ronga.[1]

Além desta especificidade lexical, o texto caracteriza-se por o que poderia intitular-se duma “monumentalidade primitiva”, isto é, por uma oralidade que chega até a alguns casos “limites”: hipertrofia das construções substantivas, relações pouco precisas entre os elementos dos enunciados, significantes vagos, emprego erróneo de cultismos ou intelectualismos de origem grego-latina. […]

Quanto às palavras de origem autóctone que aparecem no poema, a situação não é homogénea.

São presentes, por um lado, expressões autenticamente autóctones. É o caso dos topónimos, dos nomes próprios e das 23 denominações, em ronga, que significam animais, plantas, instrumentos de música e vários costumes.

A grande especificidade formal destas expressões autenticamente autóctones é, claro está, o aspecto sonoro, eventualmente rítmico (topónimos, nomes próprios). Pela sua abundância no texto, as palavras criam numerosas aliterações (em b, m, w, g, n, nh, ch, os sons nasais). É de notar, antes de mais, a força sugestiva da estrofe V, em que a presença de palavras em ronga é fundamental.

Por outro lado, o texto contém expressões em português africano. Quer dizer, palavras que possuem uma raiz autóctone, mas são criadas pelos meios de formação de palavras do português (sufixação). Cabe observar o carácter fónico destas palavras, que faz coabitar traços do português (-o, ou, ei) e das línguas autóctones (nomeadamnete os sons nasais): canhoeiro (verso 15), egocero (48), inhacoso (49), Funhalouro (49). É evidente que as expressões de origem autóctone adquirem, para um leitor não familiarizado com o léxico e a realidade moçambicanos, uma índole por excelência enigmática. Mais, mesmo com os apoios paratextuais, revela-se muito pouco possível decifrar a totalidade de valores simbólicos que as expressões presentes no poema representariam para um Moçambicano.

Um traço muito particular destas “palavras enigmáticas” é a importância que no texto possuem as próprias denominações, as formas. Estas apresentam-se como a essência, o fundamento do mundo africano: basta lembrar-se como no início do poema “uma saudade cresce no nome das coisas.” E são estes nomes, palavras, precisamente, que fazem surgir as coisas mesmas, o mundo africano em toda a sua amplitude e riqueza. O autêntico mundo africano, então autónomo, livre (“meus nomes puros dos tempos... de homens completamente livres!”- VI). As expressões locais têm, pois, um carácter de encantamento - “esconjuro milenário” (74). […]

O poema tem, sim, uma forma nitidamente oral: versos longos, prolixidade, repetição, enumerações, parataxe e ausência de relações entre distintos acontecimentos ou acções. […] (Mariana Kunešová, “Africanidade, poesia e tradução (caso do poema Hino à minha terra, de José Craveirinha)”, Universidade Masaryk, 2003, http://www.phil.muni.cz/rom/erb/kunesova04.pdf)



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[1] O ronga pertence às línguas dos Bantos centrais, os que representam a população de Moçambique. Convirá precisar que a situação étnico- linguística do país é muito pouco homogénea. Distinguem-se pelo menos dez grupos étnicos importantes, mas a maioria destes dividem-se em sub-grupos, que no total alcançam um número entre 80 e 90. Esta situação, aliás, reflectir-se-á claramente no poema de Craveirinha, pois uma passagem é nele dedicada à enumeração das línguas mais importantes do país. Quanto ao ronga, não é a língua da etnia mais numerosa; é utilizado apenas por um 20 por cento da população, que habitam o Sul de Moçambique. Esta zona, em que se situa a capital, conheceu a maior influência europeia. Deste modo, os Rongas puderam aproveitar a rede de escolas e missões desconhecidas em outras partes em Moçambique, e até hoje em dia possuem o maior peso político. Assim, igualmente, a língua autóctone que dominavam os literários activos no período da formação das letras moçambicanas, era o ronga.




O discurso assertivo e reivindicativo marca «Xigubo». A africanidade, a Negritude, a recusa da ideia de «civilização europeia» e «civilização ocidental» e os exemplos copiosos dos factos positivos e negativos da história e da política ocidentais (e não só), como o Ku-Klux-Klan[1], Hitler, a bomba atómica, Joana d’Arc, Gandhi ou Marx aparecem no poema «África».



XIGUBO



Para Claude Coufon



Minha mãe África
meu irmão Zambeze
Culucumba! Culucumba!

Xigubo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência
levantam os braços para o lume da irmã lua
e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.
Ao tantã do tambor
o leopardo traiçoeiro fugiu.
E na noite de assombrações
brilham alucinados de vermelho
os olhos dos homens e brilha ainda
mais o fio azul do aço das catanas.
Dum-dum!
Tantã!

E negro Maiela
músculos tensos na azagaia rubra
salta o fogo da fogueira amarela
e dança as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.

E a noite desflorada
abre o sexo ao orgasmo do tambor
e a planície arde todas as luas cheias
no feitiço viril da insuperstição das catanas.

Tantã!
E os negros dançam ao ritmo da Lua Nova
rangem os dentes na volúpia do xigubo
e provam o aço ardente das catanas ferozes
na carne sangrenta da micaia grande.

E as vozes rasgam o silêncio da terra
enquanto os pés batem
enquanto os tambores batem
e enquanto a planície vibra os ecos milenários
aqui outra vez os homens desta terra
dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos juntas na margem do rio.

(1958)




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[1] A KU KLUX KLAN surgiu no Sul dos Estados Unidos depois da Guerra Civil (1861-1864). Derrotado e destruído pelas tropas do Norte, o Sul teve que aturar a ocupação militar de 1864 a 1876. Sob Lei Marcial, o Sul viu a humilhação de direito de voto concedido aos negros. Pioraram as coisas quando os negros eram a base político-eleitoral dos aventureiros do Norte, os CARPETBAGGERS. Desnecessário dizer que as "eleições" ocorridas no Sul após a Guerra foram momentos de vingança para os negros e oportunidade de os carpetbaggers comprarem a preços baixos as propriedades dos sulistas. Era muito difícil para os brancos do Sul terem que se submeter ao domínio de negros antes vistos como escravos e coisas desprezíveis. A safadeza e corrupção política levaram os sulistas a reagir. Surgiu a Ku Klux Klan para , através da violência física, intimidar os negros. Quando terminou a ocupação do Sul, os brancos, livres das facilidades da Lei Marcial , retornaram aos postos de mando. Para colocar os negros "no devido lugar", começaram a promulgar leis racistas e, extra-oficialmente, tinham na KKK um braço armado e violento para reprimi-los politicamente.




ÁFRICA

Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturado com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos
a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.

E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rolls Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de passe.

Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos
e na minha boca diluem o abstracto
sabor da carne de hóstias em milionésimas
circunferências hipóteses católicas de pão.

E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo
vendem-me a sua desinfectante benção
a vergonha de uma certidão de filho de pai incógnito
uma educativa sessão de striptease e meio litro
de vinho tinto com graduação de álcool de branco
exacta só para negro
um gramofone de magaíza
um filme de heróis de carabina ao vencer traiçoeiros
selvagens armados de penas e flechas
e o ósculo das balas e aos gases lacrimogéneos
civiliza o meu casto impudor africano.

Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço
rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas da chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens que inventaram
A confortável cadeira eléctrica
a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos de artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Ku-Klux-Klan, Cato Mannor e Sharpeville[1]
e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre o ninho morno de Hiroshima e Nagasaki
conheciam o segredo das parábolas de Charlie Chaplin
lêem Platão, Marx, Gandhi, Einstein e Jean-Paul Sartre
e sabem que Garcia Lorca não morreu mas foi assassinado
são os filhos dos santos que descobriram a Inquisição
perverteram de labaredas a crucificada nudez
da sua Joana D’Arc e agora vêm
arar os meus campos com charruas «made in Germany»
mas já não ouvem a subtil voz das árvores
nos ouvidos surdos do espasmo das turbinas
não lêem nos meus livros de nuvens
o sinal das cheias e das secas
e nos seus olhos ofuscados pelos clarões metalúrgicos
extinguiu-se a eloquente epidérmica beleza de todas
as cores das flores do universo
e já não entendem o gorjeio romântico das aves de casta
instintos de asas em bando nas pistas do éter
infalíveis e simultâneos bicos trespassando sôfregos
a infinita côdea impalpável de um céu que não existe.
E no colo macio das ondas não adivinham os vermelhos
sulcos das quilhas negreiras e não sentem
como eu sinto o prenúncio mágico sob os transatlânticos
da cólera das catanas de ossos nos batuques do mar.
E no coração deles a grandeza do sentimento
é do tamanho cow-boy do nimbo dos átomos
desfolhados no duplo rodeo aéreo do Japão.

Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero
Perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, améns
e bíceps do meu povo.

E ao som másculo dos tantãs tribais o eros
do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a táctica harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.


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[1] Cato Mannor e Sharpeville: nomes de lugares onde ocorreram repressões policiais sangrentas na África do Sul (1960) sobre trabalhadores africanos.



Como paradigma de organização estrutural, discursiva, semântica e retórica da poesia de Craveirinha, escolhemos «África» para uma análise pormenorizada e exemplificativa.

O poema «África» é uma longa enumeração de elementos semânticos da colonização, repressão, dominação, dos colonizados, da África, com alguns (muito menos) elementos de africanidade. Pode falar-se, então, de duas isotopias que estruturam o tema do mundo colonizador e o tema do mundo colonizado.

Em termos gerais, os modos de dominação e sedução incluem a religião cristã, a oferta de bugigangas, as canções lusitanas, o culto dos heróis metropolitanos, a prostituição, a burocracia, a pornografia, o alcoolismo, o extermínio, a pena de morte, os interesses (as dependências) multinacionais, a tecnologia, a indústria, o tráfico negreiro, a sintaxe anglo-latina, etc. O desenvolvimento técnico, visto pelo crivo da Negritude, que brandia o espelho da tradição africana contra a lente de aumento do capitalismo, era tomado como a encarnação última dos malefícios ocidentais.

O poema integra ainda uma crítica aos próprios fundamentos da civilização ocidental, apontando alguns dos seus costumes, métodos, objectivos e consequências das mentalidades e práticas expansionistas.

A africanidade assenta no cultivo de valores considerados intrínsecos ao continente e aos povos de África, sobretudo os que não foram arrasados ou modificados pela dominação colonialista: o culto animista (com seus amuletos de garras de leopardo, solicitando favores divinos de chuva, de fecundidade sexual, de colheita de amendoim ou contra o ciúme); o culto da natureza e a comunhão cósmica (o apreço pelos sons do vento nas árvores, a sabedoria meteorológica de prever secas e cheias através da leitura do éter, o cultivo estético e sensorial das flores, o romantismo das aves); a assunção da revolta anti-colonial (pela tomada de consciência da dominação que conduziu ao tráfico negreiro e à exploração desenfreada dos bens materiais como o ouro e o marfim); o orgulho de pertença a um povo e uma terra assumidos incondicionalmente como seus («minha Terra»; «o nosso mais belo canto xi-ronga», considerado «moçambicano rubi»), além da apologia sensual e erótica da afectividade africana (na última estrofe), que logo na quinta estrofe se explicitara no «casto impudor africano», numa adjectivação paradoxal, típica do poeta. De resto, persiste ao longo do poema a reivindicação (a marcação) de uma pertença através de possessivos: «minha Mãe África»; «meus amuletos de garras de leopardo»; «meus campos»; «meus livros de nuvens»; «meu povo»; «minha Terra»; «nosso mais belo canto».

Há uma constante diferenciação entre as duas civilizações, cada elemento de uma contribuindo para a coerência temática ao longo do texto. O negro é caracterizado de modo eufórico, com alguns pormenores físicos sobrevalorizados: lábios grossos, cabelos ondeados, dedos selvagens.

A semântica organiza-se segundo o princípio da explanação de um tópico inscrito no (alto do) poema, segundo o princípio da coerência textual, estreitamente relacionada com a estrutura temática. Tópico duplo, pois compõe-se de duas frases, dois conjuntos expressivos complementares: um, o título, que indicia o tratamento do tema que lhe é coincidente (África); dois, a frase «coloniza minha Mãe África» indica que o predicador se reclama do continente como filho e, por outro lado, que esse continente sofreu e/ou sofre uma colonização. Acrescente-se que complementa esse tópico da África a informação (no final) de que a terra do predicador é Moçambique: «E ergo no equinócio da minha Terra / o moçambicano rubi». Portanto, entre esses dois elementos semânticos globais (África, Moçambique) se organiza toda a semântica parcelar do poema.

A terceira e sexta estrofes são paradigmáticas do processo enumerativo e acumulativo da sintaxe exemplificativa de Craveirinha: a enumeração de elementos diversificados, semântica e simbolicamente, na estrofe, que contribuem para a definição do conjunto isotópico da totalidade textual. Esta enumeração continuada, quer de elementos da mais diversa semântica, quer de topologias, toponímias e onomásticas, constituindo uma constante acumulação, arquitecta não só uma ilusão referencial, mas também acaba por definir concretos efeitos de real que perfazem um universo de referências, a partir do qual se intensificam componentes simbólicas e míticas que ancoram o texto às homologias do real empiricamente conceptualizado. As componentes simbólicas (Ku-Klux-Klan, símbolo do racismo) e míticas (Rols-Royce e Einstein, signos da mítica superioridade civilizacional) remetem para as realidades materiais e culturais de que se reclama a civilização ocidental, judaico-cristã, uma vez que a exemplificam, ao nomeá-la nas suas componentes.

A sexta estrofe congrega três tipos de enumerações. Em primeiro lugar, surgem vários elementos (cadeira eléctrica, Buchenwald, bombas V2, Varsóvia dos ghettos de judeus, Al Capone, Ku-Klux-Klan, Sharpeville, etc.) que perfazem um conjunto negativo (violência, repressão, morte) no interior do conjunto da civilização colonizadora. Ainda nesse conjunto, em segundo lugar, são indicados, nomeados, em menor número, elementos de um outro conjunto, positivo (Gandhi, Einstein, Jean-Paul Sartre, Platão, Marx, para citar os de maior benefício para a humanidade), representando a paz, a não violência ou a violência revolucionária e, portanto, a favor dos colonizados, além do pensamento filosófico e científico, que, por se contraporem aos de sinal negativo, contribuem para as contradições do sistema da civilização colonizadora. Em terceiro lugar, há uma enumeração constituindo um conjunto da civilização colonizada, caracterizado fundamentalmente por traços da Natureza e objectos tecnologicamente pouco desenvolvidos, primários (voz das árvores, livros de nuvens, flores do universo, catanas de ossos, mutovanas).

As enumerações que se sucedem exemplificativamente adentro da mesma área semântica restrita têm tendência a tornar monótona a sintaxe dos versos, pelo que estes se aproximam da dicção prosaica, por acoplamento de frases sem interligação (coordenação sintáctica) que não seja a semântica. Veja-se um exemplo: «E aprendo que os homens que inventaram / a confortável cadeira eléctrica / a técnica de Buchenwald e as bombas V2 / acenderam fogos de artifício nas pupilas / de ex-meninos vivos de Varsóvia / criaram Al Capone, Hollywood, Harlem / a seita Klu-Klux-Klan, Cato Mannor e Sharpeville / e emprenharam o pássaro que fez o choco [...]». Os verbos, os assíndetos e o tipo de começo de frases no início dos versos, associados à enumeração onomástica, toponímica, antroponímica, cultural e histórica, contribuem para a elaboração de um discurso narrático de forte concretude, ajudando decisivamente na representação como ilusão mimética do real.

Essa estratégia do concreto (enumerar, exemplificar, mostrar as componentes dos conjuntos) serve a finalidade de desocultação do real, política e ideologicamente submerso na propaganda que o dava como português, necessitado de evangelização, de civilização, técnica e moral humanistas. Processo estilístico a que um Césaire recorre com muitíssima frequência no seu longo e violento Cahier. Tal descritivismo, em Craveirinha, porque de um descritivismo emblemático sem pormenores se trata, desempenha o papel final de mostrar que a África passara e estava a passar (no contexto em que o poema surgia) por um processo de violentação, assimilação e repressão.





O Neo-realismo e a Negritude atravessam «Grito negro», que retoma da comparação da cor do negro com a cor do carvão, agora em termos da imagem do carvão como combustível (força de trabalho) para a indústria do patrão (branco), mostrando a dialéctica da interdependência entre o poder (do) branco e o trabalho (do) negro, com simplicidade expressiva: vocativo; exclamação; imagens fortes; vocabulário simples; construção frásica do quotidiano prosaico. (Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 281-284)



GRITO NEGRO

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
Para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não
Patrão!

Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu irmão
Até não ser mais tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!



Poemas do livro Karingana ua Karingana:



SANGUE DA MINHA MÃE

2ª versão



Xipalapala está chamar
oh, sangue de minha Mãe
xigubo vai começar
xigubo vai rebentar
e xipalapala está chamar sangue de minha Mãe!

Oh, sangue de minha Mãe
xigubo está chamar
xigubo está chamar
e eu vou entrar no xigubo sangue de minha Mãe!

Pode vir renegado sipai João «Mulato»[1]
com sua nonga escondida nas costas
e pode vir chuva de pedra
vir vento de fogo dos chifunfununo de feitiço
e os guardas montados em odiosos cavalos de cascos ferrados
oh, sangue de minha Mãe
xipalapala está chamar alma de minha Mãe!

E o mato dos xipene vai acordar
sangue de minha Mãe!
Oh, sangue da minha Mãe
o mato dos xipene vai finalmente acordar
e gritar no oiro terrível da grande fogueira
gritar sangue de minha Mãe!

Xipalapala está chamar
Culucumba de minha Mãe está rezar
mato vai acordar
xigubo vai começar
oh... sangue de minha Mãe xigubo vai começar
e xipalapala vai cruzar os caminhos do rio e do mar
gritar e suar no xigubo
gritar sangue de minha Mãe!


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[1] Famoso sipaio negro que era o terror dos habitantes dos subúrbios. «Mulato» era alcunha.




No poema "Ao meu belo pai ex-emigrante" Craveirinha assume a sua condição de "semiclaro" e "seminegro", mas sobretudo moçambicano:



AO MEU BELO PAI EX-EMIGRANTE



Pai:
as maternas palavras de signos
vivem e revivem no meu sangue
e pacientes esperam ainda a época de colheita
enquanto soltas já são as tuas sentimentais
sementes de emigrante português
espezinhadas no passo de marcha
das patrulhas de sovacos suando
as coronhas de pesadelo.

E na minha rude e grata
sinceridade não esqueço
meu antigo português puro
que me geraste no ventre de uma tombasana
eu mais um novo moçambicano
semiclaro para não ser igual a um branco qualquer
e seminegro para jamais renegar
um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue.

E agora
para além do antigo amigo Jimmy Durante a cantar
e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha
subconsciência dos porquês de Buster Keaton sorumbático
achando que não valia a pena fazer cara alegre
e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa
ante os meus sócios Bucha e Estica no "écran" todo
e para sempre um zinco tap-tap de cacimba no chão
e minha Mãe agonizando na esteira em Michafutene
enquanto tua voz serena profecia paternal: - "Zé:
quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém."

Oh, Pai:
Juro que em mim ficaram laivos
do luso-arábico Algezur da tua infância
mas amar por amor só amo
e somente posso e devo amar
esta minha bela e única nação do Mundo
onde minha mãe nasceu e me gerou
e contigo comungou a terra, meu Pai.
E onde ibéricas heranças de fados e broas
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias
e teu sangue se moçambicanizou nos torrões
da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital
colono tão pobre como desembarcaste em África
meu belo Pai ex-português.

Pai:
O Zé de cabelos crespos e aloirados
não sei como ou antes por tua culpa
o "Trinta-Diabos" de joelhos esfolados nos mergulhos
à Zamora nas balizas dos estádios descampados
avançado-centro de "bicicleta" à Leónidas no capim
mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas
embasbacado com as proezas do Circo Pagel
nódoas de caju na camisa e nos calções de caqui
campeão de corridas no xitututo Harley-Davidson
os fundilhos dos calções avermelhados nos montes
do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores
para salvar a rapariga Maureen O'Sullivan das mandíbulas
afiadas dos jacarés do filme de Tarzan Weissmuller
os bolsos cheios de tingolé da praia
as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã
do carro eléctrico e as mangas verdes com sal
sou eu, Pai, o "Cascabulho" para ti
e Sontinho para minha Mãe
todo maluco de medo das visões alucinantes
de Lon Chaney com muitas caras.

Pai:
Ainda me lembro bem do teu olhar
e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade
ou teus versos de improviso em loas à vida escuto
e também lágrimas na demência dos silêncios
em tuas pálpebras revejo nitidamente
eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos
dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura
na dimensão desmedida do meu amor por ti
meu belo algarvio bem moçambicano!

E choro-te
chorando-me mais agora que te conheço
a ti, meu pai vinte e sete anos e três meses depois
dos carros na lenta procissão do nosso funeral
mas só Tu no caixão de funcionário aposentado
nos limites da vida
e na íris do meu olhar o teu lívido rosto
ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus
e na minha cabeça de mulatinho os últimos
afagos da tua mão trémula mas decidida sinto
naquele dia de visitas na enfermaria do hospital central.

E revejo os teus longos dedos no dirlim-dirlim da guitarra
ou o arco da bondade deslizando no violino da tua aguda tristeza
e nas abafadas noites dos nossos índicos verões
tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero
e eu ainda Ricardito, Douglas Fairbanks e Tom Mix
todos cavalgando e aos tiros menos Tarzan analfabeto
e de tanga na casa de madeira e zinco
da estrada do Zichacha onde eu nasci.

Pai:
Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem
mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios
e Tarzan agente disfarçado em África
e a Shirley Temple de sofismas nas covinhas da face
e eu também é que mudámos.
E alinhavadas palavras como se fossem versos
bandos de sécuas ávidas sangrando grãos de sol
no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção
para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços
agitados nas manhãs de bronzes
chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias
almas esguias hastes espetadas nas margens das húmidas
ancas sinuosas dos rios.

E nestes versos te escrevo, meu Pai
por enquanto escondidos teus póstumos projectos
mais belos no silêncio e mais fortes na espera
porque nascem e renascem no meu não cicatrizado
ronga-ibérico mas afro-puro coração.
E fica a tua prematura beleza afro-algarvia
quase revelada nesta carta elegia para ti
meu resgatado primeiro ex-português
número UM Craveirinha moçambicano!





QUERO SER TAMBOR



Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu!

Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Ó velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.

Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!

Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!





O poema escolhido, para aqui ser analisado, tem por eixo temático o desejo do eu-lírico de ser tambor; ou seja, de assumir sua moçambicanidade. A busca por uma identidade nacional era reivindicação recorrente nas colónias africanas, durante o século XX. Influenciados pelas ideias pan-africanistas e da Negritude, muitos intelectuais africanos buscavam retratar os negros no centro de suas obras. A visão de Craveirinha sobre o colonialismo se aproximava da de Césaire e da de Fanon, ou seja, encarava o racismo como centro da engrenagem colonial. Sob este ângulo, Craveirinha recupera manifestações culturais populares moçambicanas em uma tentativa de denunciar as estratégias do colonizador de cooptar os colonizados.

Em “Quero ser tambor”, há logo no início a exteriorização do anseio da voz central do poema:

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Tendo estes versos em vista, nota-se que o eu-lírico reivindica o seu direito de ser moçambicano, por meio da imagem do tambor. Este objecto, ao ser evocado, possibilita duas leituras não excludentes. A primeira remete ao tambor como um instrumento utilizado em guerras; tendo isso em vista, é possível interpretar uma convocação do poeta para uma guerra contra a exploração colonial. Já a segunda evoca as batidas do tambor em rituais de iniciação, nos quais os indivíduos são preparados para uma nova etapa da vida. Assim, há a possibilidade de se inferir que os versos da primeira estrofe expressam o desejo de superar a condição colonial, na qual valores culturais moçambicanos são desvalorizados e apontam simultaneamente para a utopia de atingir uma nova etapa, na qual haja uma valorização da condição humana do povo moçambicano.

As duas interpretações aqui apontadas convergem para a questão da comunicação, isto é, o tambor como instrumento de anunciação de transformação – representados seja por tempos de guerra, seja por ritos de passagem. Nesse sentido, é possível pensar que o poema anuncia uma mudança futura. Ao valer-se da imagem do tambor nesses versos, Craveirinha reforça a intenção de estabelecer um diálogo entre o eu ser “corpo e alma só tambor”, o eu-lírico mostra uma consciência do processo de desumanização que o sistema colonial impunha e a vontade de se resgatar a humanidade roubada pelo regime. Para explicar esta ideia, tem-se em mente a própria constituição do homem africano que, segundo Fábio Leite (1995/1996), é formado de corpo, espiritualidade e imortalidade. Ao se pensar em um tambor constituído de corpo e alma da mesma essência, é possível fazer uma leitura, na qual se entendam dois dos elementos constituintes do homem na concepção africana tradicional. Confrontando os versos “tambor está velho de gritar” e “só tambor gritando na noite quente dos trópicos” está presente a noção de continuidade de um grito, que já é velho, mas que quer se renovar. Assim, nota-se o terceiro elemento que Leite aponta como formador do homem: a imortalidade, indissociável da ideia de ancestralidade.

Após a afirmação da vontade de ser tambor e de exteriorizar um grito, que em certa medida, não se materializa, há a descrição de elementos que o eu-lírico não ambiciona se transformar:

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Estes versos são constituídos por sucessivas negações, que serão sintetizadas na estrofe seguinte, por meio de seu único verso: “Nem nada!”. O eu-lírico nega a vontade de ser flor, rio e poesia, ou seja, recusa a aparente estabilidade do sistema colonial. Implicitamente a esta renúncia, ele denuncia as injustiças sociais, por meio da repetição da locução “do desespero”, reiterando que tudo o que é negado faz parte de um contexto de angústia, aflição e sofrimento, causado pela exploração colonial.

Como já foi dito anteriormente, ser tambor significa resgatar sua condição de homem, sobretudo sua moçambicanidade. O poema é construído com uma certa musicalidade que lembra a do tambor, sendo ritmado nas cadências e sons que simulam este instrumento e fazem com que a voz central do poema ressoasse em um espaço. Ser tambor permite a manifestação do sujeito que o evoca, tornando um meio de denúncia e de clamor pela identidade nacional. Assim, a evocação de valores nacionais, por meio da imagem do tambor, indica uma ligação deste poema com o contexto internacional da Negritude.

Munanga afirma que os objectivos desse movimento eram: “buscar o desafio cultural do mundo negro (a identidade negra africana), protestar contra a ordem colonial, lutar pela emancipação de seus povos” (MUNANGA, 1988, p. 40). Esse autor explica, ainda, que poetas, romancistas e intelectuais buscavam restituir o orgulho de ser negro e do passado, em uma tentativa de afirmar os valores de suas culturas, que estavam sendo sufocadas pela assimilação dos valores do colonizador.

À luz desta definição de Negritude, pode-se arriscar dizer que a presença deste movimento na poesia de Craveirinha tinha a função de denunciar o sistema colonial e suas formas de sustentação. Sob este aspecto, o racismo — retratado como uma das facetas do abuso colonial — e a cultura popular moçambicana são tematizados como uma estratégia de desmontar o discurso colonialista de desqualificação do colonizado.

Ao se deter nos verbos da segunda estrofe: nascer, correr, temperar e forjar, nota-se que acções tão naturais da vida vão convergir para o verbo forjar, o que permite interpretar que o sistema colonial inventava uma realidade que não era a moçambicana e é daí que surge a reivindicação de ser tambor, isto é, africano.

O ritmo do tambor, sugerido por meio dos versos clamados, reforça a identidade moçambicana e funde o batuque, representado pela repetição das palavras, com a voz do eu-lírico, provando que a moçambicanidade está inerente ao eu-lírico, mesmo que as condições históricas tentem escamoteá-la.

Craverinha não exalta só a condição do homem africano, mas também da natureza local:

Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Na esteira da valorização de elementos moçambicanos, percebe-se nesses versos a consagração da terra e alguns de seus elementos: lua cheia, pele — metonímia do homem — sol e troncos duros. Há uma sugestão de uma fusão entre homem e natureza, por meio da justaposição de imagens que nos remetem ora aos homens — o ato de gritar, a pele —, ora à natureza — sol, lua e troncos. Essas imagens levam a um processo de enrijecimento das pessoas, por meio do último verso da estrofe citada. Quando se examina os versos reproduzidos acima, nota-se que o poeta restringe, por meio do advérbio “só”, tal fusão, permitindo interpretar que tal processo não atingia a todos e sim somente uma parcela da população.

Eu!

Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

À luz desta estrofe, nota-se que o eu-lírico destaca a sua individualidade, que é expressada pelo pronome “eu”. Ao espacializar os versos na Mafalala, que é um bairro periférico de Lourenço Marques, o poeta faz referência a sua vivência, visto que foi neste espaço que ele viveu muito tempo. Quando se toma por base a expressão “silêncio amargo da Mafalala”, pode-se inferir que a qualificação amarga faz referência directa às condições precárias e às humilhações, em que os habitantes da Mafalala vivem. O som do batuque do tambor mistura-se com o desespero do eu-poético que se encontra “perdido na escuridão da noite perdida”. Há a sugestão da imagem de um ambiente silencioso e solitário, mas no qual o som dos tambores ressoa, remetendo-se a uma moçambicanidade latente, em meio às imposições do Império luso em África.

Na última estrofe, tem-se uma repetição das ideias aqui sugeridas: o desejo de resgatar a moçambicanidade e de denunciar as atrocidades do regime colonial:

Ó velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.

Apesar da temática destes versos ser repetida ao longo do poema, notamos que aqui no quinto verso o eu-lírico faz uma restrição temporal, pois ele expressa não querer ser uma lança “por enquanto”. Ainda analisando este verso, nota-se que o eu-lírico tenta postergar uma luta, mas esta já existe em um âmbito ideológico em sua poesia, que também é negada no fragmento reproduzido acima. Podemos entender tal negação como uma extensão da não-aceitação da realidade, que nos remetem estes versos.

A vontade de se resgatar a moçambicanidade roubada pelo sistema colonial se mistura ao tempo e se concretiza em uma festa, na qual o som do batuque predomina:

Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!

Esses versos apontam para uma utopia, aqui utilizada de acordo com a teoria de Ernst Bloch; para ele, a utopia não constitui um topos idealizado ou projectado, como era para Platão e para os filósofos do Renascimento (Thomas Morus, Campanella, Bacon); utopia é, em primeiro lugar, um topos da actividade humana orientada para um futuro, um topos da consciência antecipadora e a força activa dos sonhos diurnos.

Rita Chaves explica que: “Vivendo experiências de incomunicabilidade, o poeta vai com sua poesia, incursionar pelos trilhos da pluralidade, buscando a utopia de um projecto calcado na aceitação das diferenças, contrariando, assim, a perspectiva de que a unidade resida na pureza. Em seus versos, a defesa do enraizamento na matriz cultural africana, com seus ritmos, seus rituais, suas tradições, todo seu património, coexiste com a serena aceitação do legado da cultura lusitana. (CHAVES, “Angola e Moçambique nos anos 60: a periferia no centro do território poético” in Via atlântica nº5, 2003, p. 218)

Por fim, nota-se que a realização de se transformar em tambor não depende do eu-lírico; e sim de uma força externa a ele. Isso fica evidente na última estrofe, pois o poeta fala:

Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
…………………………………
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

Ao pedir permissão a Deus para ser tambor, fica claro que algo o impede de sê-lo, havendo assim a necessidade de algo fora de sua individualidade agir para que isso se suceda. Por meio dos versos citados, percebe-se que o eu-lírico não está livre, e sim em um estado de submissão, pois ele pede permissão para se transformar em tambor, mostrando assim a consciência do funcionamento do regime colonial.

Apesar de todos os limites do colonialismo, Craveirinha regista em seus versos os valores culturais moçambicanos e o sonho da libertação da opressão colonial, dando à sua voz e aos seus versos o tom forte e ressoante dos tambores africanos, mostrando assim que a liberdade não era um sonho individual, mas de toda uma colectividade que não podia se expressar.

Flávia Cristina Bandeca Biazetto, Revista Crioula nº 2, 11/2007, http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/02/Artigos/ArtigosFlaviaBandecaBiazetto.pdf




SIA-VUMA

Enquanto
instintivas andorinhas
incansáveis fulgem as asas
contra a taciturna saca azul
engomada a pulso sobre nós
com alcunha portuguesa de céu
suburbaninhos largam-se à mecha dos pneus à mão
ou pilotos analfabetizados mesmo assim guiam
à pata os friendships de caixote
SIA-VUMA!

E o nosso amor de homens
descerra os olhos ao nu mais feminino
de um par de pernas nacionais abertas
na insolação viril do xigubo
SIA-VUMA!

E noivas
cingem aos rins
a vertigem púrpura das capulanas
e reprimem nos bantos corações
uma a uma as missangas da tristeza
e talham a dente a xicatauana da paciência
que o tempo de amar não se extingue
e na espera o longo sono excessivo
do mais verdadeiro amor também compensa
alucinante visão de um novo horizonte
SIA-VUMA!

E carnudos
gomos de lábios escarlates de virgindade
nas nossas pálpebras
boca e músculos tlhatlhuvem a verdade
da coacta insónia do zampungana
SIA-VUMA!

E não mais o lovolo
e a estiva de manhã à noite
sem o gozo comum dos sexos
e coxas delas penetradas
a invencíveis machos de liberdade
SIA-VUMA!

E as maxilas
das fêmeas a tin-gomas de desejo
que nos mordam a carne no delírio
indelével dos dentes
e fembem-nos o torso e os punhos
à lei dos tintlholos irados
contra as maiúsculas das letras
e algarismos nas blusas de contratados
SIA-VUMA!

E o comboio dos magaízas
será transporte escolar dos meninos da linha
e os compondes celeiros do nosso milho
SIA-VUMA!

E um círculo de braços
negros, amarelos, castanhos e brancos
aos uivos da quizumba lançada ao mar
num amplexo a electrogéneo
apertará o imbondeiro sagrado de Moçambique
à música das timbilas
violas, transístores e xipendanas
SIA-VUMA

E dançaremos o mesmo tempo da marrabenta
sem a espera do calcanhar da besta
do medo a cavalo em nós
SIA-VUMA!

E seremos viajantes por conta própria
jornalistas, operários com filhas também dançarinas de ballet
arquitectos, poetas com poemas publicados
compositores e campeões olímpicos
SIA-VUMA!

E construiremos escolas
hospitais e maternidades ao preço
de serem de graça para todos
e estaleiros, fábricas, universidades
pontes, jardins, teatros e bibliotecas
SIA-VUMA!

E guiaremos as nossas charruas
editaremos os nossos livros
semearemos de arroz os nossos campos
sintonizaremos a voz dos nossos emissores
e bateremos também o crawl nas piscinas
SIA-VUMA!

E ergueremos estátuas aos nossos técnicos
estâncias para os nossos velhos
estádios para os nossos jovens
e represas alegóricas ao pai
à mãe e ao filho não evocados nas maldições
infinitas que devastaram a África
SIA-VUMA!

E distribuiremos amuletos de aritmética
e invocaremos o exorcismo dos altos-fornos
a antropologia cultural de um changana
a uma virgem maconde moçambicanamente
e a lógica diesel das geradoras na Manhiça
SIA-VUMA!

E armados de martelo e chaves-de-boca
montaremos água canalizada no Xipamanine todo
desviaremos o machimbombo 7 para a Polana
e o machimbombo 2 da Polana para o Alto-Maé
e controlaremos a lavra de quilovátios todos os dias
semeando amperes no Chamanculo inteiro
SIA-VUMA!

E inocularemos
e nós para o mundo a vacina
contra os vírus suásticos
e pendurada exibiremos ao povo dos belos bairros
a relíquia fóssil da gengiva de nojo
dos que traírem o folclore deste poema
SIA-VUMA!

E à propaganda deste abecedário
inoxidáveis ao medo
levantemo-nos ao acetileno das palavras
insurrectos em massa
SIA-VUMA!

E deixem em nós gerar-se
irresistível a prole das sementes do beijo
consanguíneo do Grande Dia
SIA-VUMA!

Que um enxame de mãos em prece
na orgia fantástica dos augúrios do nhanga
há-de voltar deste exílio
mais moçambicano connosco
SIA-VUMA!





Um poema antologiado:



SABOROSAS TANJARINAS D'INHAMBANE
I

Serão palmas induvidosas todas as palmas
que palmeiam os discursos dos chefes?
Não são aleivosos certos panegíricos excessivos de vivas?
Auscultemos atentos os gritos vociferados nos comícios.
E nas repletas "bichas"? São ou não bizarros
os sigilosos susssurros?

Em suas epopeias de humildade deixam intactos os sonhadores.
Sabotagem é despromover um verdadeiro poeta em funcionário.
Não bastam nos gabinetes os incompetentes?
Ainda mais alcatifas e ares condicionados?

Aos dirigentes máximos poupemos os ardilosos organigramas.
Como são hábeis os relatórios das empresas estatizadas
prosperamente deficitárias ou por causa das secas
ou porque veio no jornal que choveu de mais
ou por causa do sol ou porque falta no tractor um parafuso
ou talvez porque um polícia de trânsito não multou Vasco da Gama
ao infringir os códigos na rota das especiarias de Calicute.

E nos nossos tímpanos os circunjacentes murmúrios?
Não é boa ideologia detectar na génese os indesmentíveis boatos?
Uma população que não fala não é um risco?
Aonde se oculta o diapasão da sua voz?

E quanto ao mutismo dos fazedores de versos?
Não sai poesia será que saem dos verões crepusculares dos bairros de caniço augúrios cor-de-rosa?
Quem é o mais super na metereologia das infaustas notícias?
Quem escuta o sinal dos ventos antes da ventania e avisa?

II

Na berma das avenidas asfaltizadas olhemos perplexados
os sarcásticos prédios por nós escaqueirados. Não dói?
Nas escolas é maningue melhor partirmos as carteiras
e de rastos estudar no chão?
E nas fábricas que mãos são estas nossas proletárias mãos
que a trabalhar só desfabricam?
E o que é que se passa com engordecido responsável director
sempre a mandar-se em missão de serviço nos melhores hotéis das europas?
Ou então no espólio das noites de vigilância e de saco cheio
vale mais a carência nacional que ter um pide
vale ou não vale nosso esperto milícia Fakir?

III

Que os camionistas heróis dos camiões emboscados a tiro nas viagens
tragam as saborosas tanjarinas d'Inhambane ao custo das ciladas
mas que descarreguem primeiro nos hospitais
nas creches e nas escolas que o futuro do País
também fica mais doce na doçura das tanjarinas d'Inhambane
e o poder sobrevive na força de um povo com tabelas d'amor e não de preços.

Mas os auspiciosos maduros cajus purpurinos
já não nos dão os gostosos tincarôsse porquê?
Especular a pátria não é guiar a viatura nova contra os muros e os postes?
E ilegalidade só é ilegalidade nos outros? Hiena só é quizumba no mato?
Então juro que tanjarinas d'Inhambane é tanjarina d'Inhambane!

Eu adoro morder voluptuosamente os sumarentos gomos
das magníficas tanjarinas d'Inhambane. Adoro mesmo!
E desde leste a oeste quem não gosta das saborosas tanjarinas d'Inhambane?
Se não gostam, então, os que abjuram os sagrados frutos da terra-mãe
que façam lá um pai e uma mãe; Que façam tios e sobrinhos;
Que façam lá irmãos e irmãs; Que façam lá amigos e amigas;
Que façam lá colegas e camaradas;
E com a incompreensão façam lá nascer a ternura
o amor e a paz se são capazes!

IV

Pois é! As orientações de alguns directores desorientam os juízos
(deles também) mas quem é que disse que não tenho pena
dos seus conjuntos safaris embrulhando-os fresquinhos
e sem problemas de suores originários deste instabilizado clima tropical?

Quem é que disse que não lamento vê-los penosamente saindo dos "Ladas"
com as suas poses e as incalejadas mãos deles sem aguentarem sequer
abrir-se a porta e assentados esperarem que o motorista irrevogavelmemtne
dê a a volta ao mundo do fatalismo e cumpra hereditariamente essa tarefa?
Mas quem é que disse que não tenho pena?
Mas quem foi que disse que não sinto esse drama?

V

Depressa você Madalena vai bichar lenha, deixa bicha de carapau.
Tu vovó sai da bicha de capulana vai bichar pão.
E Toninho com Quiristina vai os dois bichar água.
Sexta-feira antepassada mamana Júlia dormiu lá mesmo.
Bichou toda a noite no Jone Uarre mas chegou vez ... NADA!
Aontem tomar chá não tomou ... foi no serviço.
Aoje não toma? Vai tomar amanhã.
Não toma amanhã toma outro dia.
Ou quando encontra toma de noite.
E quando não encontra de noite então dorme.
Mas quando sonhar amendoim já tomou chá, já comeu.

VI

Sim. A gente faz favor quer cascar com unha do dedo grande
as tanjarinas d'Inhambane.
Olha lá! Você estás cansado da tua terra? Salta arame ... vaaaaaiiii...
Você não gostas bandeira? Leva documento ... FAMBA!!!
Antigamente 'panhava mais fome mas não ficava aqui?
Antigamente era palmatoada. Não estava? Não ia na estiva?
Antigamente sapato não corrente de ferro? Agora quer "Adidas", não é?
Antigamente sentava no xibalo. Agora senta no Scala não senta? Mas quem deu?
Antigamente escrevia nome? Aonde? Capaz? Agora manda carta no jornal
só p'ra dizer que pão não presta. Comia qual pão antigamente?
Antigamente encontrava passaporte? Agora se não 'panha passaporte
logo fica muito triste, fica muito zangado. Faz barulho.
Antigamente não era só caderneta?
Sim! Agora come carapau. Não é peixe? Batata-doce e mandioca
agora não é comida? Porquê?
Nossa barriga alembra bife com batata frita e azeitona.
Alembra bacalhau mais grelos, mais aquele azeite d'oliveira com vinho tinto de garrafão lacrado.
Mas nós tinha isso quando queria ou quando restava? Era nossa casa? Qual casa?
Lá naquela casa a gente puxava otoclismo p'ra nosso cu pró cu dos outros?
Vá! Fala lá! A gente não ficava de cócoras numa sentina? A gente tinha balde mais o quê?

VII

É verdade; chuva na machamba não chove. Mas a gente espera. Chuva vai vir.
É verdade a gente come couve com couve, carapau com carapau, farinha com farinha.
Mas senta na mesa. Família toda senta.
Senta em casa no prédio. Amigo também senta. Senta ou não senta?
Ir embora não voltar mais? Não pode. Deixar aqui? Ir aonde? Capaz!
Mudar moçambicano ficar o quÊ? Mudar a cara ficar qual cara?
Fugir há outro que vai fugir. Moçambicano próprio não foge.
Homem quando é homem é só um coração. Não é dois.

VIII

Agora mesmo que não tem senha de gasolina não faz mal
Não há crise. Candonga tem.
Mas quem disse aquelas saborosas tanjarinas d'Inhambane não vem mais?
É preciso? A gente vai fazer estratégia de mestre Lenine
e vamos avançar duas dialécticas cambalhotas atrás
moçambicanissimamente objectivas
concretissimamente bem moçambicanas.

IX

Agora alerta camarada Control. Vem aí camião com tanjarinas d'Inhambane.
Tira dedo do gatilho e faz uma aceno d'alegria ao estóico motorista.
Ganha metical mas desde Inhambane, desde Chai-Chai, desde Manhiça
ele está guiar mas ele só sabe que chegou quando está a chegar.
Camarada Control: Aldeia é aldeia não é vila.
Camarada Control: Vila é vila não é cidade.
Camarada Control: Cidade é cidade não é distrito.
Camarada Control: Distrito é distrito não é província.
Camarada Control: Província é província não é nação.
Camarada Control: Control é control não é Governo.
Camarada Control: Território nacional é lá no primeiro
grão d'areia em Cabo Delgado até no último milímetro da Ponto D'Ouro.
Camarada Control: Abre teu mais fraterno sorriso no meio da estrada
e deixa passar de dentro para dentro de Moçambique
nossas preciosas tanjarinas d'Inhambane.
Agora escasca uma tanjarina e prova um gomo.
É doce ou não é doce camarada Control?

Pronto!
Muito obrigado Camarada Control!
E viva as saborosas tanjarinas d'Inhambane...
VIVA!!!

Cidade do Maputo, 1982-84
(José Craveirinha, versão em Nunca Mais é Sábado. Antologia de Poesia Moçambicana, Nelson Saúte (org.), Lisboa, D. Quixote, 2004, p. 103.
Disponível em: http://maschamba.weblog.com.pt/arquivo/2005/06/saborosas_tanja.html)



Dois poemas, produzidos em contextos histórico-ideológicos distintos, nomeadamente “Sia Vuma” (antes da Independência do país) e “Saborosas Tanjarinas de Inhambane” (cerca de dez anos depois dessa mesma Independência), traduzem superiormente este pendor quimérico e visionário do poeta maior de Moçambique. Nele são indissociáveis as interacções entre a contrafacção poética e o meio a que pertence, numa clara reafirmação da especificidade da arte africana que se articula poderosa e constitutivamente com o mundo empírico.

Temos, por conseguinte, no primeiro poema, a exuberante exposição de uma imaginação que febrilmente arquitecta uma realidade por vir, espaço-nação idealmente robustecido por três dos grandes mitos do imaginário moderno, como sejam, a Liberdade:

E dançaremos o mesmo tempo da marrabenta
sem a espera do calcanhar da besta
do medo a cavalo em nós
SIA-VUMA!

a Igualdade:

E construiremos escolas
hospitais e maternidades ao preço
de serem de graça para todos
e estaleiros, fábricas, universidades
pontes, jardins, teatros e bibliotecas
SIA-VUMA!

e a Fraternidade:

E um círculo de braços
negros, amarelos, castanhos e brancos
aos uivos da quizumba lançada ao mar
num amplexo a electrogéneo
apertará o imbondeiro sagrado de Moçambique
à música das timbilas
violas, transístores e xipendanas
SIA-VUMA

São discerníveis, neste caso, as marcas simbólicas (marrabenta), metafóricas (sem a espora do calcanhar da besta), linguísticas (dançaremos, o mesmo tempo, Sia-Vuma) e referenciais (hospitais, maternidades, fábricas, universidades) que traduzem uma genuína e eufórica vibração reconstitutiva e em que a descontaminação e a correcção do presente implica a projecção de uma realidade paradisíaca. Isto é, recusa-se uma situação real e constrangedora e parte-se idilicamente para um mundo virtual, do qual se desfruta larga e voluptuosamente:

E não mais o lovolo
e a estiva de manhã à noite
sem o gozo comum dos sexos
e coxas delas penetradas
a invencíveis machos de liberdade
SIA-VUMA!

[…] Embora se enquadre nas chamadas “utopias realizáveis”, em que clamorosamente vemos proclamada uma Idade de Ouro, não mais como nostálgica evocação do passado, mas como realidade incontornável do porvir, espécie de “cosmogonia do futuro”, a poesia pró-independentista de José Craveirinha, emblematicamente representada por “Sia-Vuma”, tem em si os gérmenes de um desencanto por vir que a própria exuberância da representação toda ela solar, emocional e optimista parece prenunciar. Afinal, “a utopia afigura-se, portanto, salutar como um raio de sol sobre o quotidiano cinzento ou uma gargalhada quando o tédio nos atormenta” (Paquot, 1997, p. 9).

Será precisamente no poema “Saborosas Tanjarinas d’Inhambane”, onde cerca de sete anos depois da eufórica vertigem desencadeada pela Independência, já “sem a espora do calcanhar da besta”, emerge o verso do desengano, o amanhecer das ilusões traídas:

Como são hábeis os relatórios das empresas estatizadas
prosperamente deficitárias ou por causa das secas
ou porque veio no jornal que choveu de mais
ou por causa do sol ou porque falta no tractor um parafuso
ou talvez porque um polícia de trânsito não multou Vasco da Gama
ao infringir os códigos na rota das especiarias de Calicute.

Fragor de um adstringente desencanto entretanto amenizado pela desconcertante magia criativa do poeta e pela pregnância evocativa da fruta (a tanjarina) que faz explodir os múltiplos sentidos e sabores do poema, “Saborosas Tanjarinas d’Inhambane” assume-se como a mais madrugadora expressão dos (in)cumpridos vaticínios do poeta da Mafalala.

Da altissonante confiança no futuro inscrita em “Sia-Vuma” (será, dançaremos, seremos, construiremos, guiaremos, semearemos, ergueremos, distribuiremos, inocularemos, etc.), atracamos, então, em “Saborosas Tanjarinas de Inhambane”, porvir outrora feérico que se faz aí presente de incertezas, de inquietações:

Serão palmas induvidosas todas as palmas
que palmeiam os discursos dos chefes?
Não são aleivosos certos panegíricos excessivos de vivas?
[…]
E nos nossos tímpanos os circunjacentes murmúrios?
Não é boa ideologia detectar na génese os indesmentíveis boatos?
Uma população que não fala não é um risco?
Aonde se oculta o diapasão da sua voz?

tal é o quadro da generalizada desorientação:

Depressa você Madalena vai bichar lenha, deixa bicha de carapau.
Tu vovó sai da bicha de capulana vai bichar pão.
E Toninho com Quiristina vai os dois bichar água.

E o poeta faz-se cronista do quotidiano de todas as privações:

Sexta-feira antepassada mamana Júlia dormiu lá mesmo.
Bichou toda a noite no Jone Uarre mas chegou vez ... NADA!
Aontem tomar chá não tomou ... foi no serviço.
Aoje não toma? Vai tomar amanhã.
Não toma amanhã toma outro dia.
Ou quando encontra toma de noite.
E quando não encontra de noite então dorme.
Mas quando sonhar amendoim já tomou chá, já comeu.

da galopante vandalização:

Na berma das avenidas asfaltizadas olhemos perplexados
os sarcásticos prédios por nós escaqueirados. Não dói?
Nas escolas é maningue melhor partirmos as carteiras
e de rastos estudar no chão?
E nas fábricas que mãos são estas nossas proletárias mãos
que a trabalhar só desfabricam?

da impunidade

Especular a pátria não é guiar a viatura nova contra os muros e os postes?
E ilegalidade só é ilegalidade nos outros? Hiena só é quizumba no mato?

Num poema todo ele regado de refinada, mas sarcástica ironia, em alguns momentos oscilando para o tragicómico, particularmente quando se opõe presente e passado:

Nossa barriga alembra bife com batata frita e azeitona.
Alembra bacalhau mais grelos, mais aquele azeite d'oliveira com vinho tinto de garrafão lacrado.
Mas nós tinha isso quando queria ou quando restava? Era nossa casa? Qual casa?
Lá naquela casa a gente puxava otoclismo p'ra nosso cu pró cu dos outros?
Vá! Fala lá! A gente não ficava de cócoras numa sentina? A gente tinha balde mais o quê?

À firmeza cáustica que sedimenta as sensações e percepções do sujeito em relação ao mundo que o envolve e que se desagrega notoriamente, corresponde a aguda e narcísica consciência da condição providencial da poesia e do sentido messiânico do poeta:

E quanto ao mutismo dos fazedores de versos?
Não sai poesia será que saem dos verões crepusculares dos bairros de caniço augúrios cor-de-rosa?
Quem é o mais super na metereologia das infaustas notícias?
Quem escuta o sinal dos ventos antes da ventania e avisa?

E na esteira desse dificilmente irrefragável sentido de missão que se reconhece em Craveirinha, vemos insinuar-se nas linhas amargas em que se cose a quase totalidade do poema, uma paradoxal, quase capciosa réstia de optimismo. Isso, precisamente na forma reiterada e cantante como se convocam as “saborosas tanjarinas d’Inhambane”, preciosidade utópica, metáfora, afinal, de todas as esperanças:

Que os camionistas heróis dos camiões emboscados a tiro nas viagens
tragam as saborosas tanjarinas d'Inhambane ao custo das ciladas
mas que descarreguem primeiro nos hospitais
nas creches e nas escolas que o futuro do País
também fica mais doce na doçura das tanjarinas d'Inhambane

Da evocação realística e suculenta da “tanjarina”:

Eu adoro morder voluptuosamente os sumarentos gomos
das magníficas tanjarinas d'Inhambane. Adoro mesmo!
E desde leste a oeste quem não gosta das saborosas tanjarinas d'Inhambane?

o poeta prolepticamente parte para o apelo de valores como o do nacionalismo, patriotismo: “Se não gostam, então, os que abjuram os sagrados frutos da terra-mãe / que façam lá um pai e uma mãe” e heroísmo: “Agora alerta camarada Control. Vem aí camião com tanjarinas d’Inhambane / Tira dedo do gatilho e faz um aceno d’alegria ao estóico motorista”.

E é assim que o patriótico citrino avoluma o caudal do visionarismo poético de José Craveirinha, numa alquímica combinação em que poema, sujeito e objecto (a “tanjarina”, obviamente) se tornam símbolo do mesmo destino: o futuro:

Camarada Control: Abre teu mais fraterno sorriso no meio da estrada
e deixa passar de dentro para dentro de Moçambique
nossas preciosas tanjarinas d'Inhambane.
Agora escasca uma tanjarina e prova um gomo.
É doce ou não é doce camarada Control?

Em suma, apesar de que tanto “Sia-Vuma” como “Saborosas Tanjarinas d’Inhambane” respondem a condicionalismos sócio-históricos determinados, o que perpassa nas contrapostas aspirações do sujeito que aí emerge é uma profunda e estruturante vocação pelo porvir, num eterno e recriador fascínio pela reinvenção do presente e do mundo. Por consequência, devemos olhar para a construção utópica em José Craveirinha não já como simples exercício de evasão, de consolação ou de compensação, mas sobretudo como expressão de uma dimensão particular da condição humana capaz de gerar lampejos de esperança perduráveis, tal como singularmente o faz a genialidade inconformada do poeta da Mafalala.

Francisco Noa, “José Craveirinha: para além da utopia” in Revista Via Atlântica nº5, Universidade de São Paulo, 2002. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via05/via05_07.pdf





Poemas do livro Maria:



ACERCA DE MARIA, LIVRO DE POEMAS DE JOSÉ CRAVEIRINHA

A obra Maria de José Craveirinha foi publicada pela primeira vez em 1988. A presente edição é mais que uma segunda edição, é um segundo livro Maria, ou «outra Maria» como o poeta gosta de dizer, mais exactamente o «Maria balada inteira» publicado em 1998.

A primeira Maria (48 poemas) é uma obra de carácter antológico; e a actual, cerca de 200 poemas separados em quatro «livros» apresenta-se como uma espécie de diário, em que os poemas equivaleriam a «anotações», ao registro de reacções que o poeta sente em relação à perda de sua mulher. Este é o resultado de um trabalho ao «longo do tempo», desde a «partida» de Maria, em Outubro de 1979.

Não há no contexto da poesia de língua portuguesa um livro que se assemelhe a Maria, na sua desmesura e enquanto colectânea de elegias fúnebres. Craveirinha lida com as formas e as convenções poéticas sempre muito ao modo pessoal, de inesperadas inflexões inventivas. (http://00h00.giantchair.com/livre/?GCOI=27454100864950)



Maria celebra, num lirismo desmesurado, a memória da esposa morta, cuja ausência se faz presença pela delicadeza dos sentimentos em saudade eternizados. […]. Com Maria, mergulha num lirismo existencial, filosófico e metapoético que não só recorda o quotidiano compartilhado com a amada, mas também efectua reflexões profundas acerca da vida, da morte e da própria poesia. (Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, “Sia-vuma, Craveirinha!”, Rio de Janeiro, 2003, http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=69)



A escrita de José Craveirinha é uma reinvenção da língua portuguesa que se investe de uma combinatória de formas e de géneros provindos da oratura moçambicana e da tradição literária ocidental. [...]

Não há, no entanto, no contexto da poesia de língua portuguesa, um livro que se assemelhe a Maria, na sua desmesura elegíaca, enquanto único poema com centenas de versos, à maneira de elegias fúnebres. Seguramente será este um dos mais belos livros da poesia lusófona das últimas décadas, segundo palavras de Fernando Martinho, e entre as razões que para isso concorrem não será das de menor peso a capacidade que revela de provar que a mediação da escrita poética não constitui obstáculo à comunicação de emoções e sentimentos, redundantes e quase morbidamente enaltecidos, interminável potenciar da palavra lamento. Mas, mais do que isso, Maria é um livro em que encontramos, de novo, o sábio cruzamento das formas literárias do ocidente com as formas orais africanas.

Com efeito, os dois livros intitulados Maria, na sua sequência imparável de um poema de dor, apresentam-se, ao mesmo tempo, como um interminável panegírico em louvor da amada, retomando, por vezes, Craveirinha, a dicção dos primeiros longos poemas de Xigubo, onde se capta a forma poética do izitopo, lento e longo poema panegírico oral, característico do cancioneiro changane, ou do izibongo, panegírico comum ao grupos zulu e nguni. O poema “Maria (Salmo Inteiro)” retoma inequivocamente esse ritmo repetitivo refrânico, em que o elogio se repete indefinidamente, desnudado em dor: “A minha tão bela esposa Maria [...] Minha tão simples esposa Maria [...] Minha bela esposa Maria! [...] Ah Minha tão querida companheira Maria [...].” (1998, p.9)

Aliás toda a obra de Craveirinha é intervaladamente entrecortada por este ritmo louvatório, exaltante e majestoso, de longo sopro da ode, que se apossa em torno dos entes ou figuras mais queridas, o Pai, a Mãe, a Terra, África, ou entre personagens-tipo, mais ou menos anónimos, possíveis de serem consagrados, enquanto figuras-símbolo, exemplares, dignas de serem memória e exaltação da comunidade, pela sua capacidade de serem simultaneamente individuadas e colectivas.

Se Maria institui, na sua infinita sageza, como vulto tutelar e maternal, vera encarnação do númen familiar, “Penélope suburbana”, como lhe chamou Rui Knopfli, urdindo a lenta teia da sua resignação, a figuração hiperbólica de Maria é irradiante, e passível de uma diferente leitura, pois ganha também a dimensão plural da Mátria, em que outro amor, que é o mesmo, se conjuga na morte, que irrompe pouco depois da independência com a guerra civil.

Ana Mafalda Leite, “A fraternidade das palavras” in Revista Via Atlântica nº5, Universidade de São Paulo, 2002. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via05/via05_03.pdf



[Maria é um] compêndio esplendoroso, maduro e definitivo, que descreve seus magros anos após a morte da esposa em Outubro de 1979. Não há nada igual e tão perturbador na lírica amorosa. Em versos livres, sintéticos e arrebatados, fareja-se uma ausência em todo passo. É como se a ausência estivesse ali, diante dos olhos, carnal e perfeita, compadecida das imperfeições de quem a chama. É quase uma elegia, quase um salmo, algo de intuição romântica e de acabamento contemporâneo. Apesar de ser um canto fúnebre, uma despedida, é um testemunho de alta vivacidade e sensualidade sobre “um inusitado casal de namorados já com netos”. O marido refaz o trajecto dos dois, começando com o final: a descrição da cena em que ela vai a um exame no hospital para nunca mais voltar. O livro é dividido em cinco capítulos. A simplicidade da linguagem segue o despojamento e o rigor do afecto. Nele, o homem suporta a imensidão da casa, o trabalho dobrado. Engoma a camisa, demora-se na agulha e chora a clareza da mobília e das roupas no armário. Tudo sugere a presença da esposa, conhecida pelos vizinhos e amada pelos filhos, que segurou a barra na época em que o marido foi preso (“num jipe militar/ lírico algemado”). O que incomoda Zé não é tanto a falta de Maria, é descobrir que – sem ela – é ele que falta. Sem o testemunho da mulher, é como se não vivesse. Se não há como contar para Maria, seus dias não têm sentido. Ele vivia para narrá-la. “Mais feliz do que eu/ nossa mútua ausência/ a ti minha esposa/já não te dói.” Um exemplo é quando o autor tenta limpar a casa: “Nos primeiros tempos/ como era inábil/ nas minhas mãos/ a viuvez/ da vassoura.”

A delicadeza dos tropeços e a protuberância dos detalhes ocupam o primeiro plano. O único espaço vem a ser o tempo perdido, filtrado pelas “orfãs persianas”. Craveirinha encontra Maria na máquina de costura e de escrever, no fogão pago em doze prestações e nos chinelos da manhã. “Essa maneira de não estarmos juntos mais nos insepara.” O autor explora a elegância do prosaico, das coisas miúdas antes manuseadas instintivamente e que passam a significar a tomada de consciência. Ele não tinha percebido, mas permanecer na residência é continuar a habitar o corpo de sua mulher.

Quem espera um livro caudaloso, adjectivado, com floreios e barragem de metáforas, deve se abaixar na estante. Essa dor aqui é a de olhos enxutos, que só fala o necessário. E quando fala, cala. De uma caixa de correspondência, a nostalgia vem à tona e baralha a respiração:

Um
só momento
situem-se na minha carne
ao ler os convites
endereçados ao casal

Sr. José Craveirinha e Excelentíssima Esposa.



Os actos falhos são reservas de memória. O luto do moçambicano é sabedoria de conhecer inteiramente uma pessoa a ponto de desconhecê-la. A convivência não pode abolir a surpresa. A ironia perpassa o périplo do viúvo, dirimindo resquícios de sentimentalismo e dando um tom de honestidade ao relato. O sujeito não se esconde na resignação, porém actua com autocrítica ao rodar as lembranças, como ao constatar que ela desejava uma mesa maior e que agora sozinho a mesa sobra. Na metade da obra, o poema Posfácio assegura a verdadeira insuficiência do narrador poético:

Nostalgias de Maria
são já o posfácio
de um Zé Póstumo
em única
edição.

Capa: Anónimo.

Tiragem: este exemplar.



É uma poesia de carácter, se assim posso qualificar. Que não procura se glorificar em piedade e pedir perdão. Ninguém sente culpa de nada. O que existe é uma necessidade de ser real. De tornar a palavra visível e corpórea. Há um profundo respeito ao outro, uma admiração que não precisa ser exagerada, que é feita aos goles e gestos, documentada em letra pequena atrás das fotos. Um sozinhamento a dois, onde “a solidão já é uma pessoa”. (Fabrício Carpinejar, “José Craveirinha: antiquíssimos astros da África” in Revista de cultura nº 34, Fortaleza, São Paulo, Maio de 2003, disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/ag34craveirinha.htm)



Sobre todas as coisas Maria é a que sabe decifrar aforismos, enigmas.

“Enquanto os cães ladram
as caravanas passam”
diz um antigo
aforismo árabe.

E quando nos mordem os cães
e os rafeiros nos rosnam
ao passarem os carros?

Um camelo azul pasta num oásis de ervilhas
e velhos sábios calam-se a perscrutar as dunas

Se eu perguntasse à Maria
– calmamente tomando seu chá de limão –
a Maria havia de me dizer.



Maria é a que guarda a chave da sabedoria popular, da oralidade primitiva, da raiz de linguagem revolucionária; Maria, se vista à luz da fantasia do homem em torno da mulher e da sua natureza de dar nascimento às coisas que ele transforma, é a detentora da identidade, por ser “mãe” da poesia oral, por sua vez “mãe” da poesia letrada. […] Maria apresenta a continuidade entre a forma natural de expressão e a Poesia. Morta, é como se o poeta dissesse perder-se com ela a memória das coisas, as fontes do imaginário que ele manipula, o inconsciente em suma. […]

Aproximaria este desaparecimento de forma abrupta duas formas discursivas antagónicas, que não deixam de ver a mulher através de um estereótipo (a que recolhe o saber da terra, mitos, lendas, aforismos)? No poema lido, sem dúvida, O PAI IDEAL se diz “Castrado” naquilo que o identificava e que o instrumentaria contra o colonizador. […]



VILA ALGARVE

(1ª versão, 1988)



Privilégio de alvenaria
adapta aos menos loquazes.

Ou se falava
ou dele se boatava na cidade
a fuga.

O portão da tua vigília
e eu ainda estamos.

No entanto um típico tremor
quando olho os clássicos azulejos
são os meus joelhos a falar.

Foram vinte e quatro séculos morridos
em duas dezenas de horas de pé:
Graças à tua desobediência lá fora
não foi necessário constar
que o José Craveirinha fugiu.

Devo-te, Maria no
epílogo do pânico
manter-me calado
sem me sentir um verme.
VILA ALGARVE

(2ª versão, 1998)


adaptado aos menos
loquazes
era ali.

Ou se dizia sim
ou éramos boatados
por uma fuga inexistente.

No entanto um típico tremor
quando olho os clássicos azulejos
são os meus joelhos a recordar.

Ainda são vinte e quatro séculos morridos
em duas dezenas de horas de pé:
Graças à tua heróica humildade
não tive de ser boatado
que o Zé Craveirinha
escapuliu.

Devo-te, Maria
no tremor do pânico
manter-me eu mesmo
sem me sentir
um verme.

Só eu
e o portão da nossa vigília
ainda somos relembrados
na memória dos filhos.





Vila Algarve: Jogo de alternâncias em que se celebra o rigor do silêncio: através de movimentos de retenção e de fuga, o silêncio constrói o diálogo outro entre dois sujeitos que se identificavam como fundadores de práticas discursivas menos complementares que hierarquizantes (o popular e o poético). No poema, há, pelo menos, duas interpretações importantes: 1) a liberdade de expressão como uma interlocução de contrários: silêncio X fala, dentro X fora, hiperbólico X breve ; 2) a solidariedade no silêncio, ao invés de significar a derrota da liberdade de expressão da fala, pode ser o exercício de construir outra estratégia discursiva. Poema, em suma, em que a lembrança de outro, orientador destas reflexões (“Aforismo”), não esgota a novidade de que neste a oralidade é vista à sombra de um aforismo (ajoelhar-se ou não) que revela “o carácter relacional de toda identidade”(LACLAU, 1981), anunciando um novo horizonte para a experiência cultural (racial e sexual). (Jorge Fernandes da Silveira, “José Craveirinha Impoética Poesia” in Revista Via Atlântica nº5, Universidade de São Paulo, 2002. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via05/via05_08.pdf)




MARIA (SALMO INTEIRO)

Aos cinquenta anos de idade
toda a gente reconhece a Maria
mas unicamente, só eu
posso revelar a fútil narrativa
da esposa Maria e do seu marido Zé.

A minha tão bela esposa Maria
sempre de humilde sorriso triste e semanalmente
nosso ósculo vigiado sabendo-me ao sal do seu choro
e no seu rosto mais de 100 anos sombrios
da ternura mais amargurada do que as minha agruras.
Seu corpo modelado nas mornas areias da praia da Inhaca
agora não sei quantos dias sim e quantos dias não
a culinária votando a Maria ao ostracismo.
Maria minha mulher distraindo-se de viúva
a lavar e a passar a ferro a roupa de outros.
Maria suportando nosso filho mais novo ao colo
e o mais velho dormitando em suas costas
oh, Maria cliente ociosa nas enfermarias
reservadas às mães indígenas no Hospital Central.

E no quadrienal viuvismo do marido
Maria um século a desviver uma vida excessiva
cosendo e recosendo o coração nos urgentes vestidos
dos modernos figurinos das senhoras freguesas
saindo de mordazes “Alfa-Romeus” à nossa porta
enquanto à Maria até lhe extorquiam nossas alianças
por menos de metade como piedosa ajuda
e as freguesas pagando aos poucos e poucos por favor
com jejuns da Maria madrugando-lhe os serões.

Mas tudo vivo nos requintados capítulos do snobismo
da Maria só com um estóico par de sapatos
apenas três blusas de sair com a Maria
ora com uma saia preta
ora com outra cinzenta revezando-se.

Maria com os nossos filhos para se distrair.
Maria dona de noites inteiras para não dormir.
Maria uma sistemática viúva de tudo na Mafalala.

Minha tão bela esposa Maria de Lurdes Craveirinha
quase à morte quando nos nasceu o Stélio
uma cardioboicotagem quase fatal quando veio o Zeca
mas a Maria com olhos de meiguice intranquila
divergências da aorta a esfregar o soalho
traiçoeiras faltas de ar a rachar lenha no quintal
uma intervenção cirúrgica de emergência
e num domingo inoportuno
mais outra a infecundá-la para não viajar de vez.

Minha tão bela esposa Maria
cinquentenária jovem isenta de frívolos aniversários.
Minha mais amada por mim do que as frívolas
raparigas de provocantes fémures desnudos.
O rim esquerdo a sabotar o destino da Maria disse um médico.
Problemas do coração e evitar a costura disse um cardiologista à Maria
E mais as nevralgias do meu problema consternando seus silêncios
no nosso lar cabisbaixo da sua ausência.

Minha tão simples esposa Maria
incansável na quotidiana viuvez por mim
nos imitigáveis quatro anos do meu ocioso
falecimento numa exclusiva urna de óptimo ferrolho
com uma clássica paisagem de ferros em quadrilátero
na hipotética janela.

Minha saudosa esposa Maria!
Tão absurda no seu egocêntrico amor a doer-lhe mais
o meu sofrimento do que o seu próprio martírio
ou no paradoxo das fotonovelas do Grande Hotel e o Crime do Padre Amaro.

Maria uma vez por semana indo orar por mim à igreja
e no meio das complicações por minha causa
Maria uma mulher dialecticamente nos problemas
os poderes celestiais estranhando sua lógica
de mãe à míngua de arroz em casa
mas com direito a rusgas
aos papéis do marido
hoje inócuos papéis, Maria,
apenas fortuitos papéis gatafunhados
nas madrugadas escuras
da Mafalala.

Ah!
Maria sósia moçambicana da Mãe de Máximo Gorki
que nunca se desmulatizou com cremes de clarear a pele
nem pentes de ferro quente para ludibriar o cabelo crespo
e nem uma vez as unhas envernizadas
mas sim a esconder os meus poemas impublicáveis
alguns jornais na lista dos proibidos
Sóngoro Cosongo do Nicolas Guillén
o Canto General do Neruda
poemas de Nazim Hikmet
uma edição do Kama Sutra com poses ao natural
a foto do Lenine metida na Seara Vermelha do Jorge Amado
outra de Pedro Armendaliz de sombrero na figura de Zapata
Esteiros de Soeiro Pereira Gomes
as Vinhas da Ira do Steinbeck
revistas suecas com tipas e tipos em todas as poses
uma série de fotos de ex-namoradas e de mulheres casadas
um maço de panfletos passados à gestetner às duas da madrugada
os Subterrâneos da Liberdade e o Filho Nativo
a cartilha Estes Dias Tumultuosos e também
Por Quem os Sinos Dobram do Hemingway.
Além de tudo isso mas muito mais
os primeiros estatutos e uma certa bandeirinha
ainda fora da ONU mas na lista de compromisso
mais além dos cem por cento no plebiscito
moçambicano dos nossos corações.

Minha bela esposa Maria!
Tão bela esposa no aneurisma sem respeito pelo seu drama.
Tão bela esposa no realismo socialista do rústico fogareiro a carvão.
Tão bela esposa cliente incorrigível das farmácias.
Tão bela esposa de pé aos solavancos no machimbombo 13.
Tão bela esposa madrugando na consulta externa.
Tão bela esposa hoje... senha da Clínica Geral.
Tão bela esposa amanhã... senha da cirurgia.
Tão bela esposa depois... senha da cardiologia.
Tão bela esposa a seguir... senha do Raio X.
Tão bela esposa também na oftalmologia
e tão bela esposa voltando mais neura
da Neuropsiquiatria.

Minha tão bela esposa Maria!
Ninguém dela tão indigno como o seu único marido
neste momento a redigir sua autobiografia de ex-falecido
4 anos inquilino onde o senhorio só cobra rendas
do universo da solidão
meus defeitos e suas qualidades exortando
o insólito casal perfeito.

Esposa Maria
a cada minha veleidade
sabendo-se nunca preterida.
E com meus defeitos e suas qualidades
Compúnhamos o mais incongruente invejado casal perfeito.

Mas na Maria um dédalo de rugas grátis
e uma sabedoria de estoicismo no sorriso entristecido
de quem aprendeu desperdício de lágrimas
uma impropícia ideologia intrínseca para os nossos filhos
fingirem-se iludidos pelo mutismo da mãe
mas no íntimo sabendo que a alma
da mãe chorava pelo pai
e por eles também.

Ah!
Minha tão querida companheira Maria.
Sabendo minhas várias menininhas e meninonhas
da nobre casta dos N'gomane à espera
mas só tu minha viúva a companheira única noiva numa vida.
Só tu cliente assídua no meu cemitério de ilusões neo-emparedadas.
Só tu mais bela todos os dias enlutada por mim.
Só tu desajudada por todos mas feliz na visita semanal.
Só tu apontada a dedo mas na tua estóica ternura
a sofrer do pai dos seus filhos
que podia estar bem na vida como tantos
mas não quis saber da família
meteu-se em problemas
foi um José Marti falhado
um Bolívar de papel
e ainda por cima fez os filhos
contraírem alergia a certa libré
de acintosa cor esverdeada.

E depois?
Depois muito bem feito!
Os filhos imitaram com realismo seu papel de órfãos
uma viúva tornou-se Maria
e o parvo do marido
num jipe militar
lírico algemado
e bem preso!

Foi 4 anos enviuvado de si mesmo
de poéticas algemas atrás das costas
com direito a um jipe militar,
banal encenação de quem está preso
se ignora ainda vivo
O mais mudo sotaque do último chão.






JACARANDÁS DE SAUDADE

Tempo
de seus passos vindo
pelo tapete de roxas flores
dos jacarandás enfileirados na rua.

Hoje
é eterno o ontem
da silhueta de Maria
caminhando no asfalto da memória
em nebuloso pé ante pé do tempo.

...

Todo o tempo
colar de missangas ao pescoço
sempre o tempo todo
suruma minha suruma da saudade.

Suruma daquela saudade
das flores dos jacarandás
nos passos de Maria.





PABLO PICASSAMENTE

lembrança
dolorosa gémea de ti
que o ralo cabelo
(algodão-cinza-e-poeira)
me vai requintando por fora.

Ferida
de memória
tão Pablo Picassamente bem suturada
que poucos podem perceber
onde ela te perpetua.
Além da rigidez fatal da tela
e dos agoniados azuis
é de vinagre impressionista
meu sombrio tom de guache.





ADÁGIO

Tinhas razão Maria.
Sorrisos peculiares de ofídeo
gente que mais bajula
mais periculosa.





EM CASA

Em casa
nenhuma hora coincide
com a hora das refeições.

Chego.
Cedo ou tarde
ou nem sequer aparecendo
ninguém me pergunta onde estive.
Demore ou não demore
ninguém me espera.





MESA GRANDE

Dos nossos projectos
de uma mesa maior
mais me lembro
quando sentado no mesmo lugar
aquela mesma exígua mesa
agora é uma mesa grande.





O VELHO DOS VASOS

no remanso de água
dos vasos.

Com as sedosas pétalas
contíguas ao teu sono
perfumando à volta.

Ultimamente é o Zeca
quem paga ao velhote
que põe flores
e muda a água.





PRESSENTIMENTO

espera aí mesmo por mim.
Exilado nos meus versos
vou ter contigo.
Sem falta!