9.1.12

Alda Lara - "corpus" para estudo

   ALDA LARA

Índice
José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007

NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
 
Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque nasceu em Benguela, Angola, a 9 de Junho de 1930, e faleceu em Cambambe, Angola, a 30 de Janeiro de 1962. Era casada com o escritor Orlando Albuquerque. Muito nova foi para Lisboa onde concluiu o 7º ano dos liceus. Frequentou as Faculdades de Medicina de Lisboa e Coimbra, formando-se por esta última com a apresentação da tese de licenciatura sobre psiquiatria infantil. Em Lisboa esteve ligada a algumas das actividades da Casa dos Estudantes do Império. Declamadora, chamou a atenção para os poetas africanos, que então quase ninguém conhecia. Depois da sua morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira instituiu o Prémio Alda Lara para poesia. Orlando Albuquerque propôs-se editar-lhe postumamente toda a obra e nesse caminho reuniu e publicou já um volume de poesias e um caderno de contos. Colaborou em alguns jornais ou revistas, incluindo a Mensagem (CEI). Figura em: Antologia de poesias angolanas, Nova Lisboa, 1958; amostra de poesia in Estudos Ultramarinos, nº 3, Lisboa1959; Antologia da terra portuguesa - Angola, Lisboa, s/d (1961?); Poetas angolanos, Lisboa, 1962; Poetas e contistas africanos, S.Paulo, 1963; Mákua 2 - antologia poética, Sá da Bandeira, 1963; Mákua 3, idem; Antologia poética angolana, Sá da Bandeira, 1963; Contos portugueses do ultramar - Angola, 2º vol, Porto, 1969. Livros póstumos: Poemas, Sá da Bandeira, 1966; Tempo de chuva, 1973.
Segundo Orlando de Albuquerque, no prefácio ao livro de Poemas de Alda Lara (Porto, Vertente, 1984, 4ª ed.), “a sua poesia caracteriza-se por uma intensa angolanidade implícita e, sobretudo, por um extremo amor e carinho, quase ternura, pelos outros. Ternura de menina-mulher, que sofria com os sofrimentos alheios, que vibrava com as desgraças da sua terra […]”.
 José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007
 
A ESCRITA FEMININA NO PANORAMA LITERÁRIO AFRICANO EM LÍNGUA PORTUGUESA
  
A produção literária de autoria feminina ainda é muito incipiente nos países africanos de língua portuguesa. Isto constitui um paradoxo, já que durante as lutas libertárias as mulheres desempenharam importante papel político nas organizações que lutavam contra o colonialismo. […]
No cenário literário angolano figura como precursora na poesia Alda Lara, autora de Poemas (1966), Poesia (1979) e de um livro de contos intitulado Tempo de Chuva (1973). A temática de sua obra é a opressão, que assola homens e mulheres em geral, e, apesar de abordar questões universais como a fraternidade, a solidariedade e a paz, seu enfoque poético está direccionado para as formas de acção feminina na busca do espaço sonhado, em especial nos anos de 1950-1960, quando se intensificava o projecto libertário angolano.
Tal projecto se nutria da utopia de homens e mulheres compartilharem a construção da nação idealizada pelos angolanos. Com nítida percepção do sofrimento que assolava a humanidade da época, Alda Lara ultrapassa a concepção nacionalista para ouvir as «vozes silenciadas» além da África de língua portuguesa:
POEMA
Os gritos perderam-se sem encontrar eco.
Os punhos cerrados e os ódios calados
Dividiram os Homens,
que se não reconheceram mais...
Mas as lágrimas cavaram sulcos fundos
nos olhos vazios de esperança,
e os sulcos não se apagaram...
Trilhando entre o «eu», o sonho e o povo, características que a aproximam de Alda Lara, Noémia de Sousa direcciona seus versos para apreender o próprio «eu» como expressão da subjectividade feminina repleta de imagens que corporificam os desejos «espirituais, admirações, dores e sensações» (Inocência Mata, Literatura Angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta, p. 122). […]
Numa leitura intertextual entre «Negra», de Noémia de Sousa, e «Prelúdio»[1], de Alda Lara, verifica-se a força da voz poética feminina, que no dizer de Inocência Mata, em Literatura Angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta, se liga à ideia de regresso e comunhão com a Terra, com o Povo e com a causa colectiva.
As seguintes estrofes do poema «Prelúdio», de Alda Lara, ilustram a busca da identificação imagética da situação a que foram expostas as comunidades africanas de língua portuguesa, em especial as mulheres, durante a colonização:  
Pela estrada desce a noite…
Mãe-Negra, desce com ela...
Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guisos,
nas suas mãos apertadas.
duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada...
Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?...
Que é feito desses meninos 
que ela ajudou a criar?...
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...
Mãe-Negra não sabe nada...
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!...
Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
que costumavas contar...
Muitos partiram p'ra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...
tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta bem calada.
É a tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada…
Lisboa, 1951
As marcas da oralidade e da História permeiam a poesia de Alda Lara […].
Entre os temas propostos pelas escritoras, está o repensar da condição feminina, num cenário social marcado pela opressão, pela submissão feminina e pelas guerras coloniais que silenciaram a confraternização presente no ritual do contar estórias em volta das fogueiras. Mas há também lugar para o amor revivificado na intersecção dos tempos, ponto de convergência entre tradição e modernidade.
A poética e a prosa femininas nas comunidades africanas de língua portuguesa colocam o leitor diante de cenas e sinais de mulheres em espera e acção, em silêncio e canto, em cansaço e renovação, metaforizadas por vozes marcadamente orais que aproximam os sentidos na reescrita literária, reinventando imageticamente o papel da mulher nessas comunidades.  
Jurema Oliveira, “A escrita feminina no panorama literário africano em língua portuguesa: Alda Lara,
Noémia de Sousa, Ana Paula Tavares, Vera Duarte e Paulina Chiziane” in http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=657, 2002.
[1] Alda Lara, aquando da sua passagem por Coimbra, manifesta saudades não só das acácias rubras e buganvílias de Benguela como também das pessoas, como a sua velha ama negra – Lydia – a quem dedicou o poema “Prelúdio”. (cf. Alda Lara na moderna poesia angolana, Amândio César).
José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007

 José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007
A poetisa Alda Lara aparece na antologia [revista Mensagem] com alguns de seus mais conhecidos poemas. As características mais significativas de sua poesia são, sem dúvida, a expressão de um grande amor ao seu semelhante e a acolhida ao sofrimento do outro. Estas características podem privilegiar visões contrastantes sobre a beleza da natureza e o sofrimento do angolano (conforme “Prelúdio”) ou declarar um amor intenso a Angola, valendo-se da poesia para descrever as belezas “das acácias, dos dongos e dos cólios” que marcavam um forte contraste com os cenários europeus. É interessante observar, nos poemas de Alda Lara, uma preocupação visual que se concretiza na composição de pequenos quadros que procuram captar as belezas de Angola, metonimizada pelos “coqueiros de cabeleiras verdes”, e de sol ardente e pelas “acácias rubras, /salpicando de sangue as avenidas, /longas e floridas” (p. 111). Distante das descrições de cenários africanos presentes na chamada “literatura exótica” produzida em vários momentos do período colonial ou nas famosas “cartes de visite”, postais ilustrados com paisagens e tipos humanos dos espaços colonizados, produzidos com a intenção de vender a diferença exótica aos europeus, os cenários poéticos criados com detalhes da natureza africana produzem outros significados na poesia de Alda Lara. A intenção mais evidente em seus poemas é a de expressar um grande amor à terra angolana (“Noites africanas langorosas/esbatidas em luares..../perdidas em mistérios…“)[1], exaltar a exuberância das cores das flores e os odores dos frutos, e, através desses artifícios de motivação pictórica, denunciar a opressão sofrida pelos angolanos, seus irmãos. Por isso, em alguns poemas, os recursos picturais utilizados pela poetisa procuram ressaltar o horror disseminado por ações humanas, pela opressão intensa sofrida pelo seu povo. Por isso é preciso considerar que, na poesia de Alda Lara, a descrição do horror e de atrocidades figura intenções que vão além de aspectos meramente descritivos. As cenas de mutilação, tal como aparecem, por exemplo, no belo poema “Momento” almejam descrever sentimentos de compaixão, repúdio, mas também dão à descrição um peso que ratifica a denúncia e inscreve nos versos a abjeção. Nesse sentido é importante prestar atenção ao uso intencional do gerúndio que funciona nas estrofes como uma espécie de pontuação dos focos que devem ser observados pelo leitor/expectador: 
Nos olhos dos fuzilados,
Dos sete corpos tombados
De borco, no chão impuro
Eis!
...sete mães soluçando...
Nas faces dos fuzilados,
Nas sete faces torcidas
De espanto ainda, e receio,
sete noivas implorando...
E do ventre de além-mundo,
Sete crianças gritando
Na boca dos fuzilados...
Sete crianças gritando
Ecos de dor e renúncia
Pela vida que não veio...
Na boca dos fuzilados
Vermelha de baba e sangue,
…sete crianças gritando!
(112-113).
O impacto da cena descrita, com recursos visuais explorados com grande perícia pela poetisa, fica intensificado na referência à dor das mães, das noivas e na alusão às crianças, que, por uma estratégia discursiva de grande efeito, podem ser visualizadas porque assim o permitem os significantes que compõem o primeiro verso da 3 estrofe: “e do ventre de além-mundo”, distendendo o tempo da ação invocada pelo poema.
No poema “Regresso” (pp. 116-118), referentes da terra angolana são empregados para ressaltar as cores vivas e os odores fortes que compõem paisagens singulares. O eu-poético se registra com marcas de intensa subjetividade e as paisagens lembradas são esmiuçadas para compor cenários em que as cores das casuarinas, das acácias rubras e dos cheiros exalados pelo “húmus vivificante” e pelo desenho do mar que contorna “uma cidade em convulsão” possam construir uma visão em que o feminino se mostra com intensidade na declaração do amor pela terra natal.
Conforme se destacou em outro trabalho, a visão e o olfato são os sentidos privilegiados para propiciar recortes em que a terra africana é descrita em toda sua pujança, vista como um lugar paradisíaco, onde é possível viver o “prazer sem lei” expandido em excesso (cf. FONSECA: 2004). A simbologia da Mãe-Africa, reiterativa nos poemas de afirmação da identidade africana, inscreve um outro olhar que procura descrever os cenários da terra aquecida por um sol “esplendoroso e quente”. Também no poema “Presença [Africana]” (pp. 114-115), a relação entre o feminino e a terra angolana, entre o corpo da mulher e o da terra africana, ressalta aspectos que tornam Angola um micro-cosmo de um continente significado por “coqueiros de cabeleiras verdes! e corpos arrojados sobre o azul”. Nesse poema, a mulher, literariamente construída (“E apesar de tudo/ainda sou a mesma!/Livre e esguia”), realça-se com os atributos da terra africana e, através desse recurso poético, concretiza uma visão feminina do ideal a ser conquistado. A terra do “dendém”, “das palmeiras”, das “acácias rubras” é percebida através de atributos que se relacionam com a função materna (“mãe forte da floresta e do deserto”) ou com um sujeito que se declara afetivamente irmã (“ainda sou /a irmã-mulher”). Assim os poemas de Alda Lara, ao cantar o amor pelos irmãos miseráveis ou construir flagrantes em que a beleza da terra angolana é reiterada, expande o intimismo e faz da visão um mecanismo hábil à apreensão de cenários em que o outro (a Mãe-negra, os oprimidos, os companheiros de ideal) é a motivação maior de uma arte feita com a escrita. 
“Mulher-poeta e poetisas em antologias africanas de língua portuguesa: o feminino como exceção” por Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC-Minas, Brasil) in A mulher em África – Vozes de uma margem sempre presente, org. Inocência Mata e Laura Cavalcante Padilha, Lisboa, Edições Colibri, 2007, pp. 498-500
(disponível em: http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm ).

[1] Versos do poema “Noite”, escrito em Outubro de 1948 (FERREIRA, p. 115).


        
 
ESBOÇO DE INTERPRETAÇÃO DA POESIA DE ALDA LARA
 
  
Alda Lara pertence a um núcleo de alta burguesia comercial, que dispunha das disponibilidades necessárias para dar aos filhos cursos superiores nas terras longes de Portugal. Elemento este que, como é óbvio, nos ajuda a colocar o poeta e a entender melhor a articulação do seu canto. Em tal caso a poesia surge como uma soma orgânica de conteúdos humanos e a poesia sugere a elaboração de uma atitude coerente que representa a totalidade de uma acção humana. Neste aspecto a poesia de Alda Lara caracteriza não só o ambiente Benguelense que foi o da sua infância e de parte substancial da sua adolescência, mas também o despaisamento, o exílio, como será melhor dizer, do estudante angolano nas universidades portuguesas. 
Decerto que Alda Lara só por reflexo familiar sentiu a totalidade dos problemas cívicos que atingiram o cume nos anos 40; não os podia ainda investigar e sentir com exacto conhecimento de causa. E o facto de ter abandonado Benguela muito cedo para fazer em Lisboa e em Coimbra o seu curso de medicina, iria deixar-lhe na retina o canto rubro e incendiado (para alguns poetas angolanos também incendiário) das acácias das ruas de S. Filipe de Benguela, os cólios e os coqueiros e também a imagem dos quintalões benguelenses, que eram ainda o compromisso entre uma cultura que procurava assentar as suas bases numa efectiva mestiçagem e o despontar de atitudes mais rígidas entre as etnias (que a rápida valorização dos «produtos coloniais», nos anos seguintes a 1945 firmou definitivamente) que hoje são moeda corrente. Não podemos esquecer que é desse ambiente que lhe nasce o pendor patriarcalista que pode beber ainda no trato familiar, embora muitas vezes se perturbe perante a mestiçagem que é elemento comum, irreversível. Como já iremos ver, a atitude irracional da poesia de Alda Lara, assenta em grande parte numa atitude utópica, que desconhece os elementos imediatos do real. 
A poesia de Alda Lara está incompleta. É, antes de mais, uma poesia que vive no mundo da infância ou de uma primeira fase da adolescência. Poesia duplamente exilada, por consequência. Toda a vida interior do poeta se articula em relação a uma angolanidade que, embora não sendo conjugada com todos os elementos do real, é no entanto uma força aglutinadora que não pode ser descurada, mas nas palavras entrevemos, implícito ou explícito, o sentimento do exílio e, algumas vezes, a suspeita dolorosa de que a sua angolanidade não se apoderou dos elementos mais significativos. Ou, se não quisermos ir tão longe, a poesia sente que não cuidou de se apoderar de todos os elementos significativos. É este sentimento angustioso que leva Alda Lara a escrever no poema «Presença [Africana]», em que se promete à sua terra, ainda intacta, ainda idêntica a rapariguinha que saiu de Benguela, não para se deixar destruir nas terras frias e opacas da Europa, mas sim para regressar viva, senhora de uma sageza actuante. Eis que Alda Lara examina os seus mínimos gestos para saber se, realmente, enquanto anda, bebe, dorme, trabalha, passeia, não se transformou na Outra, que poderia trair, que por certo trairia, a sua mesma angolanidade. Problema que, em tal caso, a obriga a verificar as roldanas da sua intimidade, para acabar, por verificar que, apesar de tudo, é ainda a mesma (mas quanta inoculta angústia aqui se insinua, no receio de que alguém possa destruir a afirmação denunciando-lhe os desvios). Pois é esta forma adversativa que nos importa reter já que através dela chegaremos ao cerne de uma poesia desgarrada, por não lhe ter sido possível viver os problemas na sua imediatidade, pois eram elementos apenas sentidos. Não esqueçamos que lhe faltam pontos de referência, e que a sua linguagem trabalha num vácuo que o poeta não pode evitar; deseja ir ao mais fundo dos problemas, mas não lhe estão próximos, sente-os por refracção. E a ordem da sua poesia não é já um lento caminhar através das essências de uma angolanidade racionalmente estruturada, mas um assalto precipitado aos signos, engendrando um estilo que, embora dotado de boas qualidades rítmicas, pretende chegar depressa. Esta busca apaixonada da sua própria raiz, não aniquila a possibilidade de um estilo, mas corroe o imo significativo da poesia transformando-a num elemento ambíguo. Coisa que Alda Lara sente, e que nos leva a concluir que a sua poesia não chegou a completar-se. Em vez do círculo fechado e total, temos o ângulo raso. 
Vejamos outro poema de Alda Lara, em que é utilizada uma técnica contrapontística para nos fazer sentir, mais do que mostrar-nos, a sua angolanidade. É um dos seus poemas mais conhecidos, o «Regresso», que assenta, em primeiro lugar, na noção de exílio, fornecida pelo primeiro verso («Quando eu voltar»). Essa mesma noção irá depois estabelecer o contraste entre os elementos citadinos, digamos lisboetas ou coimbrões, e os elementos ecológicos que definem a presença de Benguela. Uma presença em que distinguimos uma lenta cópula entre o azul ultramarino e o verde intenso, glauco. É assim que pressentimos que o poeta se viu forçado a fazer o inventário dos objectos da cidade, estabelecido através de um novelo de sensações que são não só conscientes, mas também inconscientes e sub-conscientes. Neste caso, recorrendo à psicologia, verificamos que a «doce confusão natal» está recheada de elementos que, racionalmente, o poeta seria incapaz de expor coerentemente. E a exarcebação dos sentidos a que a força a cidade (torna-se necessário reconhecer, não o esqueçamos, todos os objectos que encontra e, também, indicar-lhes a função e o lugar respectivo; quer dizer que se trata de estabelecer uma nova hierarquia, tanto para os objectos como para os actos; naturalmente também para os pensamentos, o que, no caso peculiar de Alda Lara, força a pesquisa de novos dominadores para os sentimentos), leva-a a evocar os planos mais calmos da cidade natal, que é não um elemento de Angola, mas sim a sua Angola. Vejamos mais de perto o problema transposto para a poesia: «não mais o pregão das varinas, / nem o ar monótono, igual, / do casario plano…»; o contraponto fornecido pela fímbria costeira aparece imediatamente, para devolver o poeta ao seu terreno natal ou seja, a consciência de um lugar que lhe é próprio e cujas peculiaridades são, por assim dizer, anteriores ao seu nascimento. Alda Lara sente-as não já como um elemento geral do meio ambiente, mas sim como coisa que lhe foi previamente destinada e que, portanto, não é obrigada a estudar e a valorizar; as coisas (os objectos e os actos existiam antes e, por isso, a sua identificação está garantida por uma intimidade que o poeta não poderá nunca ter com os elementos das cidades portuguesas: «hei-de ver outra vez as casuarinas / a debruar o oceano...». E, na terceira estrofe do poema, o plano dos sentimentos (que pressupõe um contínuo recurso aos elementos do subconsciente e do inconsciente), surge com toda a veemência: «Os meus sentidos, / anseiam pela paz das noites tropicais, / em que o ar parece mudo / e o silêncio envolve tudo... / Tenho sede... / Sede dos crepúsculos africanos / todos os dias iguais, / e sempre belos, / de tons quase irreais...». 
por várias vezes tenho mostrado que a presença do mundo da infância na poesia angolana não é elemento que possa ser passado em claro, pois é ele uma constante. Encontramo-lo tanto nos poetas do Norte, como nos do centro ou do Sul. E se o recurso ao mundo da infância é, por via de regra, uma fuga ao mundo do homem adulto, do homem da praxis social, devemos entender aqui o problema com uma óptica diversa. Todos estes poetas procuram, projectando a poesia no passado, recuperar uma ausência da cor, que permitia ver o mundo definido como uma totalidade onde não seria possível discernir qualquer interstício traiçoeiro. A fragmentação do mundo em hierarquias de cor, repele o poeta para uma marginalidade que não pode deixar de ser encarada. A tentativa de solução do problema é, para alguns deles, uma projecção integral no passado, que desconhece a solução dialéctica dos problemas. A formação católica de Alda Lara iludiu-a sempre quanto à maneira de solucionar os problemas humanos. É por isso que o mundo assume uma significação puramente individual e a sua poesia vive de impulsos orgânicos, é certo, mas que não representam uma totalidade. Não esquecemos, não seria possível esquecê-lo, que Alda Lara conhece a existência de um povo, mas as suas preocupações nunca são profundamente sociais, ou pelo menos não compreende ela os problemas ao nível da «acção histórica dos grupos». O apelo do povo, esse está bem presente, mas Alda Lara não consegue descobrir os meandros da alienação, e a ruptura entre a sua posição e a acção dos grupos surge no poema «Regresso», em que a terra angolana nos é dada através de elementos impressionistas, onde o homem angolano só está presente nas batucadas, que a infância do poeta recorda, «soando pelos longes, / noite fora...». Excluindo-se voluntariamente do grupo, recusando-se, pois, implicitamente, a somar a sua acção individual ao total das acções individuais que formam a essência real da acção histórica do grupo, Alda Lara tinha forçosamente que mergulhar num mundo de infância, que era o único capaz de lhe devolver a Benguela quieta dos quintalões, das amas negras, da rua onze — e não esqueçamos que esta rua é elemento poético usado também por Aires de Almeida Santos e Ernesto Lara (Filho); — formando um paraíso ideal, mas completamente alheio à acção do tempo. 
Mas eis que parecem surgir em Alda Lara algumas tendências colectivas, que pretendem devolver-lhe a noção de mundo total. É no poema «Presença [Africana]» que entrevemos uma autocrítica dilacerar o conformismo da sua poesia, obrigando-a a reexaminar o seu domínio próprio e a medir a relação existente entre o seu comportamento e a totalidade dos comportamentos sociais onde se define uma angolanidade empiricamente imediata. É por isso que os dois primeiros versos rompem directamente para a matéria do poema: («E apesar de tudo / ainda sou a mesma!»), que recordam um diálogo em que impende sobre o poeta a acusação de se ter modificado, num sentido contrário ao que pretende afirmar a sua poesia. Para se caracterizar o poeta há-de recorrer aos mais esplendorosos elementos do seu mundo infantil, pois que só assim se poderá ainda reconhecer como pertencendo a esse mundo distante e que alguém lhe mostra perdido por sua própria culpa; por isso ela é: «a dos coqueiros, / de cabeleiras verdes / e corpos arrojados / sobre o azul... / A do dendém / nascendo dos abraços das palmeiras... / A do Sol bom, mordendo / o chão das Ingombotas…/ A das acácias rubras, / salpicando de sangue as avenidas / longas e floridas...», para se apoderar logo de elementos humanos que não conhecíamos na sua poesia (que não surgiam sequer no poema dedicado ao moçambicano João B. Dias[1]): «Sim! ainda sou a mesma... / — A do amor transbordando / pelos carregadores do cais / suados e confusos, / pelos bairros imundos e dormentes / (Rua 11!... Rua 11!...) pelos negros meninos / de barriga inchada / e olhos fundos… » É bem verdade que Alda Lara não se identifica inteiramente com esta humanidade, que é para ela, se não no todo pelo menos em parte, uma sub-humanidade (veja-se que os carregadores são suados — o que representa a caracterização física imediata, resultado de um trabalho bruto e que se nos apresenta como irracional, ou até como bestial; e confusos — o que pretende assumir um nível de representação psicológica, que, no entanto, não podemos interpretar como uma hipótese de fazer surgir a negação da negação, elemento dialéctico que Alda Lara não conhece, e cuja validade se recusa aceitar). Mas não há dúvida de que o poema assume uma outra capacidade de significação histórica, o que conduz o nível da significação puramente individual para outro plano (o que serve para nos mostrar como se interpenetram os elementos estéticos, filosóficos e outros, com os fornecidos pela biografia e pela psicologia), em que a possibilidade de uma modificação do mundo, do real, surge, impondo-se por força da própria redução do homem a um estado de sub-humanidade. O absurdo da situação individual, ou o absurdo da posição de alguns grupos (o que desvenda o papel das hierarquias da cor dentro deste plano), e a interpretação do mundo angolano obriga Alda Lara a assumir a responsabilidade de novas coordenadas para a sua angolanidade. Nenhum subjectivismo é possível, diz-nos o poeta, quando os negros meninos mostram a evidência das suas barrigas inchadas (as barrigas de gimbonzo, do vernáculo quimbundo), que denunciam, aos olhos do experto, uma ausência de elementos vitamínicos e proteínicos (sabemos que as barrigas inchadas desaparecem facilmente com uma dieta de leite bem equilibrada, mas o leite, sim, o leite onde está ele?), e por isso, aqui se efectiva uma mistura, embora ainda não harmoniosa, os dados sociológicos com os postulados éticos. 
A última estrofe do poema é elucidativa quanto ao sentimento de ambiguidade que continua a atormentar Alda Lara: «Terra! / Ainda sou a mesma! / Ainda sou / a que num canto novo, / pura e livre, / me levanto, / ao aceno do teu Povo!...» Aqui se prometia a grande viragem na poesia de Alda Lara, pois que o poeta verifica existir como dado funcional e integral de um povo, embora fosse ele sentido à distância (notemos que não se trata do meu povo, mas antes do povo da terra angolana, o que denuncia um afastamento que não podemos caracterizar agora e aqui). Assim as situações ganham neste poema a sua dureza concreta e a absurdidade da ordem social pede uma acção que o poeta ainda não sabe qual possa ser (embora saiba já que não basta exercer a medicina com justa consciência profissional para estar plenamente justificada). Mas sabe, o que o poema demonstra, que é necessário procurar uma posição em que o rigor da observação do concreto, se ligue aos elementos individuais. A evolução de Alda Lara condu-la, obrigando-a a percorrer um caminho sinuoso e semeado de obstáculos, à verificação de que a vida social é essencialmente prática. Posição esta que só poderia encontrar a sua amplitude natural se a Alda Lara tivesse sido possível continuar a sua obra na terra áspera e suave de Angola, em contacto com a sua humanidade, com o seu povo. Este objectivo não pôde ela cumprir racionalmente, mas o seu corpo o está objectivando, na velha povoação comercial do Dondo, à sombra de uma das suas acácias rubras, símbolo dos poetas angolanos que procuram fundar as razões para promover, sempre com mais intensidade, a independência da sua poesia. 
Alfredo Margarido, “Esboço de interpretação da poesia de Alda Lara”, in Mensagem, 1962
(apud Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa, Lisboa, Regra do Jogo, 1980, pp. 300-307)
(disponível em: http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm )

[1] Poema “Rumo” dedicado ao J.B.Dias em 1949 à sua memória em 1951.


        OS VALORES DO CENTRO
 
 
Se, simultaneamente, atentarmos nos textos escritos a partir do Centro e do Sul [de Angola], verificaremos ainda que em alguns deles perpassa, ora uma tímida consciência regional, ora uma procura de diferenciação face a Luanda. […]
Na apresentação da colecção Bailundo, no livro de Alexandre Dáskalos, há um manifesto assinado por Ernesto Lara Filho e Inácio Rebelo de Andrade, que se localizam no Huambo. A peça afirma claramente a intenção de “dar a conhecer os valores do centro de Angola, ao mesmo tempo que se pretende estender dois braços — um para o Norte e outro para o Sul [...] — para ligar num amplexo fraterno essas duas correntes literárias já com vida própria [referem-se à colecção Autores Ultramarinos e à Imbondeiro]. […]
Numa carta sintomática, enviada a Inácio Rebelo de Andrade a partir de Lisboa e datada de 21 de Janeiro de 1962, Ernesto Lara Filho garante, a propósito da sequência a dar à Colecção Bailundo: “Eu creio que a Alda, [...] depois do Aires e com os «apports» do Alexandre Dáskalos e meu, apesar de pobres, temos muito ainda que dizer em Angola, devemos dizê-lo. Acho melhor sacrificar o resto da colecção a essa necessidade premente que há imediatamente, de dizer algo, sobre o Centro de Angola, literariamente falando, claro. Aliás, autores ultramarinos acabam de publicar […] os seguintes poetas: António Jacinto, Agostinho Neto, Alexandre Dáskalos, Manuel Lima, etc etc, dando um carácter estritamente político à coisa. Bailundo é literatura como nós combinámos e de «pés fincados na terra». Assim, eu creio que ainda e acima de Imbondeiro e Autores Ultramarinos, vamos no caminho mais certo que é o moderado, o do centro, o do centro de Angola, por casualidade.” […]
Numa carta de Alda Lara ao irmão (parcialmente copiada por este naquela a que acabamos de aludir, e talvez escrita em 1961) a identificação regional da sua poesia é igualmente assumida conectando-se com o distanciamento face à estrita partidarização da Mensagem: “Gostaria que me dissesses o que devo fazer para te enviar uma selecção dos meus poemas para a Colecção Bailundo. Creio já ser tempo de os pôr cá fora, e na verdade gostaria mais de os vêr «integrados» na Colecção Bailundo do que na dos Autores Ultramarinos. Nem sequer é por razões políticas. Nunca as tive e agora é que as não tenho mesmo. A política e tudo quanto dela deriva dá-me vómitos, para te falar com franqueza. E apenas porque situo a minha poesia mais próximo da tua ou da do Aires de Almeida Santos do que da dos outros. Compreendido? Mais tarde, a geração futura decidirá quais foram os verdadeiros «poetas». O resto é nada.” 
Francisco Soares, Notícia da literatura angolana, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp. 215-218.
(disponível em: http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm )
  
TEMAS DE ESTUDO EM TORNO DA POÉTICA DE ALDA LARA:
- Auto-representação do “eu”.
- A imagética feminina: inconformismo vs destino de mulher.
- Uma educação para os valores: solidariedade, fraternidade, generosidade, evangelismo…
- Representação de África: os lugares de afecto, enfeitiçamento e amor pátrio.
- Um olhar sobre o outro (o objecto de desejo amoroso).
José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007

     
        ALDA LARA (1930-1962)
                                ANTOLOGIA POÉTICA  E  LINHAS DE LEITURA
(por José Carreiro)
 
             

Índice de poemas



Todo o meu ser
é um lago fundo e doce…

Linhas de leitura do poema "Lago":

- Interpretação da metáfora contida na 1ª estrofe.
- Dimensão psíquica revelada pela repetição da 1ª estrofe na 5ª.
- Importância da última estrofe para a compreensão do poema.
José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007
Por onde passeiam barcos
com meninos…
namorados que se beijam
em noites sem destino…
e também tu! Oh belo solitário
inesquecível…
Todo o meu ser é um lago
doce e fundo…
onde a tristeza,
é uma ansiosa e definível
aspiração…
Campo Grande, Agosto de 1959
 
  
Linhas de leitura do poema “Ronda”:

- O tempo ansioso.
- Relação do conteúdo do poema e
   1) o título;
   2) a pontuação expressiva.
- Musicalidade do poema.

José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007
Na dança dos dias
meus dedos bailaram...
Na dança dos dias
meus dedos contaram
contaram, bailando
cantigas sombrias...
Na dança dos dias
meus dedos cansaram...
Na dança dos meses,
meus olhos choraram
na dança dos meses
meus olhos secaram
secaram, chorando
por ti, quantas vezes!
Na dança dos meses
teus olhos cansaram...
Na dança do tempo,
quem não se cansou?!
Oh! dança dos dias
oh! dança dos meses
oh! dança do tempo
no tempo voando...
Dizei-me, dizei-me,
Até quando? até quando?
 
 

Linhas
de leitura do poema “Apelo”:

- Significado de “rio” como imagem psíquica do “eu”.
- Esperança e idealidade.
José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007
Na outra margem do rio,
(e eu vejo-a!)
há campos vedes de esperança,
abandonados ao calor de um sol eterno...
Na outra margem do rio,
onde não chega o inverno,
há campos ondulantes de searas maduras.
para os pobres matarem nelas
todas as fomes do mundo...
Na outra margem,
Tudo se começa de novo
e não há dias passados
que amargurem os desgraçados.
Não há dinheiro,
E os homens dão-se as mãos,
que pelo dia inteiro
ouvi as canções que os seus lábios entoaram...
Nem raivas mal contidas,...
nem agonias perdidas,
nem dor...
que na outra margem do rio,
há Amor...
………………………………………
E entre mim, e a outra margem,
esta terrível viagem.
Este rio caudaloso, imundo,
sujo de todos os calhaus,
que nele vomitou o mundo...
Entre mim e a outra margem,
O rio…
Ah! barqueiro...
Porque tardas?...
Não vês que faz frio?...
Espero, mas desfaleço…
Não tardes mais barqueiro
Não tardes!...
que é tão longe ainda
a outra margem do rio…
1949
 
 
À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhamdo algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

Linhas
de leitura do poema “Testamento”:

- Figura de estilo que estrutura a 1ª estrofe: a antítese.
- Significado das personagens enumeradas.
- Atitude de doação do sujeito poético – generosidade, evangelismo…
José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007

Linhas de leitura do poema “Romance”:
 - INTERTEXTUALIDADE com o romance tradicional português “A Bela Infanta” (versão de Almeida Garrett):
   Estava a bela infanta
   No seu jardim assentada,
   Com o pente de oiro fino
   Seus cabelos penteava
   Deitou os olhos ao mar
   Viu vir uma nobre armada;
   Capitão que nela vinha,
   Muito bem que a governava.
[…]
 - Tempo ansioso.
 - Inconformismo vs destino de mulher.
José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007
Menina dos olhos belos
dos verdes olhos tão belos,
menina dos olhos tristes...
Sentada nessa varanda
onde não passa ninguém
porque esperas soluçando
todo o dia quem não vem?...
Menina dos belos olhos.
Mãos cruzadas. Olhar vago.
Nem o mais ligeiro afago
o vento aqui te deixou...
Posta então nessa varanda,
porque esperas noite e dia,
tão serena e tão sombria
quem por aqui já passou?...
Se tu soubesses menina!...
Enquanto bordas sonhando
em tua toalha fina,
bem perto desta varanda,
quantas varandas quebraram!
quantas meninas deixaram
suas tão belas varandas,
e nunca mais se tornaram...
Quantas! Quantas!
E tu, sentada bordando...
E tu, sozinha esperando,
alta noite, longo dia,
por quem te esqueceu, passando...
E tu, sentada, sonhando...
Hão-de apagar-se as estrelas
há-de enrugar-se o arvoredo
E tu, sentada, sonhando
em silêncio, o teu segredo...
Menina! Parte! Olha o tempo!
Pega na tua, esta mão...
Irás pela madrugada
em teu cavalo alazão!
Irás de cabelo solto
e larga saia rodada,
irás de coração livre,
entoando uma canção!...
Irás! E contigo, certo,
só teu destino liberto
Só tu, sozinha, à procura
doutra estrela, noutro céu,
em busca de quanta vida
esta morte em ti nasceu!...
1949-1950
 
 
E apesar de tudo,
Ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto...
A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
Nascendo dos braços das palmeiras...
A do sol bom, mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras, 
Salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
Sim!, ainda sou a mesma.
A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11!... Rua 11!...)
pelos meninos
de barriga inchada e olhos fundos...
Sem dores nem alegrias,
de tronco nu
e corpo musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...
E eu  revendo ainda, e sempre, nela,
aquela
Longa história inconsequente...
Minha terra...
Minha, eternamente...
Terra das acácias, dos dongos,
dos cólios baloiçando, mansamente...
Terra!
Ainda sou a mesma.
Ainda sou a que num canto novo
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu povo!  
                             
Benguela, 1953
Noites africanas langorosas,
esbatidas em luares...,
perdidas em mistérios...
Há cantos de tungurúluas pelos ares!...
....................................................
Noites africanas endoidadas,
onde o barulhento frenesi das batucadas,
põe tremores nas folhas dos cajueiros...
.....................................................
Noites africanas tenebrosas...,
povoadas de fantasmas e de medos,
povoadas das histórias de feiticeiros
que as amas-secas pretas,
contavam aos meninos brancos...
E os meninos brancos cresceram,
e  esqueceram
as histórias...
Por isso as noites são tristes...
Endoidadas, tenebrosas, langorosas,
mas tristes... como o rosto gretado,
e sulcado de rugas, das velhas pretas...
como o olhar cansado dos colonos,
como a solidão das terras enormes
mas desabitadas...
É que os meninos brancos...,
esqueceram as histórias,
com que as amas-secas pretas
os adormeciam,
nas longas noites africanas...
Os meninos-brancos... esqueceram!...
 
                                                                       Outubro de 1948

REGRESSO

Quando eu voltar,
que se alongue sobre o mar,
o meu canto ao Creador!
Porque me deu, vida e amor,
para voltar...

Voltar...
Ver de novo baloiçar
a fronde majestosa das palmeiras
que as derradeiras horas do dia,
circundam de magia...
Regressar...
Poder de novo respirar,
(oh!...minha terra!...)
aquele odor escaldante
que o húmus vivificante
do teu solo encerra!
Embriagar
uma vez mais o olhar,
numa alegria selvagem,
com o tom da tua paisagem,
que o sol,
a dardejar calor,
transforma num inferno de cor...
……………………………….........…..…..
Não mais o pregão das varinas,
nem o ar monótono, igual,
do casario plano...
Hei-de ver outra vez as casuarinas
a debruar o oceano...
Não mais o agitar fremente
de uma cidade em convulsão...
não mais esta visão,
nem o crepitar mordente
destes ruídos...
os meus sentidos
anseiam pela paz das noites tropicais
em que o ar parece mudo,
e o silêncio envolve tudo
Sede...Tenho sede dos crepúsculos africanos,
todos os dias iguais, e sempre belos,
de tons quasi irreais...
Saudade...Tenho saudade
do horizonte sem barreiras...,
das calemas traiçoeiras,
das cheias alucinadas...
Saudade das batucadas
que eu nunca via
mas pressentia
em cada hora,
soando pelos longes, noites fora!...
…………………………………............……..
Sim! Eu hei-de voltar,
tenho de voltar,
não há nada que mo impeça.
Com que prazer
hei-de esquecer
toda esta luta insana...
que em frente está a terra angolana,
a prometer o mundo
a quem regressa...

Ah! quando eu voltar...
Hão-de as acácias rubras,
a sangrar
numa verbena sem fim,
florir só para mim!...
E o sol esplendoroso e quente,
o sol ardente,
há-de gritar na apoteose do poente,
o meu prazer sem lei...
A minha alegria enorme de poder
enfim dizer:
                   Voltei!...
                                                                       1948
 
 RUMO
 
                 (ao J.B.Dias em 1949 à sua memória em 1951)
É tempo, companheiro!
     Caminhemos ...
Longe, a Terra chama por nós, 
e ninguém resiste à voz 
     da Terra ...  
Nela,
o mesmo sol ardente nos queimou
a mesma lua triste nos acariciou,
e se tu és negro
e eu sou branca,
a mesma Terra nos gerou!  
     Vamos, companheiro…
     É tempo!
Que o meu coração
se abra à mágoa das tuas mágoas 
e ao prazer dos teus prazeres 
     irmão
Que as minhas mãos brancas
     se estendam 
para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras... 
E o meu suor 
se junte ao teu suor, 
quando rasgarmos os trilhos 
de um mundo melhor!  
     Vamos!
que outro oceano nos inflama.. .
     Ouves?
É a Terra que nos chama...
É tempo, companheiro!
     Caminhemos ...


 
 
Teus olhos estão chorando?...
— pois que chorem moreninha...
Teus olhos estão esperando?...
— pois que esperem moreninha...
Que importam lábios cerrados,
e pensamentos riscados,
e braços longos, nervosos,
presos a vidas inúteis,
presos a gostos quebrados?...
Mulher fez-se p’ra sofrer.
Para sofrer e esperar.
Mulher fez-se p’ra sofrer
e perdoar...
(Há milénios que sofremos...
não é tempo?...)
Mãe-burguesa era mulher.
Mas Mãe-burguesa morreu...
Enterrou-se no caminho
debaixo de uma palmeira
qualquer.
Nesse tempo era pequena.
Hoje,
a palmeira cresceu...
Mãe-burguesa não sou eu!
Mãe eu sou.
Burguesa não.
Quem dança na minha roda
ao som da minha canção?...
Danças tu a noite toda
coração!
Meus filhos estão dançando
meus netos dançando estão.
Minha roda é roda grande,
e é grande a minha canção! 
                                                                       1949/50
 

    INTERTEXTUALIDADE:
“Sermão de Nossa Senhora do Ó” (1640)
   
Padre António Vieira.
A figura mais perfeita e mais capaz de quantas inventou a natureza e conhece a geometria é o círculo. […] E porque o O é um círculo, e o ventre virginal outro circulo, o que pretendo mostrar em um e outro é que, assim como o círculo do ventre virginal na conceição do Verbo foi um O que compreendeu o imenso, assim o O dos desejos da Senhora na expectação do parto foi outro circulo que compreendeu o eterno. […]
Nossa Senhora do Ó...
Senhora do ventre pleno,
do ventre belo e fecundo,
semente que deste o fruto
com que Deus salvou o mundo!
Senhora da inquietação...
da hora doce e sublime,
da espera silenciosa
por um destino mais fundo.
Senhora da dor inteira,
que liberta e que redime.
Nossa Senhora do Ó...
Pelas mãos que nesta hora
se entregam silenciosas
como tu ‘speraste outrora…
Pelas mulheres que hoje, ao mundo,
lançam o grito sangrento
do seu destino mais fundo!
eu te peço
erguida e forte,
que embora gerado em sangue
e embora riscado a espinhos
nos calvários dos caminhos…
esse destino se cumpra,
como se cumpriu o Teu!...
                                                                       1950
 
 
A Irmã-Mulher das gaivotas,
senta-se à beira do mar...
Solitária toda a tarde,
às gaivotas vem falar...
E enquanto as horas se quebram,
em estilhaços, no areal,
andam à tona das ondas,
restos de um sonho irreal...
A Irmã-Mulher das gaivotas,
é delgada como elas.
Anda vestida de branco,
como as gaivotas mais belas!...
Mas nunca pôde voar...
Nunca viu de perto, o céu,
nunca viveu sobre o mar...
Por isso essa grande mágoa,
serena e desesperada.
Por isso as pétalas de água
que caem na balaustrada...
E a ver as horas tombando,
sentada à beira do mar,
a Irmã-Mulher das gaivotas.
nos olhos cor de esmeralda,
traz um silêncio a chorar...
                                                                       1951
 
 
(a Charlotte Bronte)
Não digas que os meus seios
são duas rolas brancas,
cansadas de não partir...
ou que o meu corpo
é um fruto quente e bom,
que em noites de verão,
apetece morder e ferir...
Não digas que os meus lábios
são promessas de desejos
mal contidos,
ou que os meus cabelos soltos
lembram os afagos ligeiros
dos dias não cumpridos...
que as tuas mãos saibam colher
aquilo que não foi...
E tu venhas antes p’ra me dizer,
que a minha sensibilidade
é trémula e franzina,
como a graça
de uma flor-menina...
que a minha inteligência
é funda e nua,
como as noites que não tiveram lua,
e que a minha vontade,
é tão forte e tão plena,
que só o teu amor,
a condena!...
                                                                       1951
 
 
Este é o poema que eu escrevi
para as crianças da minha terra!...
Para as crianças negras,
e brancas,
e mestiças,
sem distinção de cor...
comungando o Amor
que as unirá...
Este é o poema que eu escrevi a sonhar,...
de olhos perdidos no mar,
que me separa delas...
O poema que escrevi a sorrir…
a gritar confianças desmedidas
nas ânsias partidas,...
quebradas,...
como velas de naufrágio!...
O poema que eu escrevi a soluçar,
sobre os livros
onde não encontrei
para os sonhos resposta um dia!...
                                                                       1949
 
Irmão Negro!
Tu tens braços longos como a noite,
e vens na voz das casuarinas
batidas pelo vento,
beijar as bandeiras erguidas
sobre o teu sofrimento...
Tu que sais agora das cavernas
do medo e da escuridão,
para entoar ao sol escaldante
o canto da tua libertação
Que sulcas com rios de esperança
a vida morta do meu país,...
que fecundas com sangue e suor de esperança
a vida morna do meu país,...
Tu— Irmão Negro— Homem da Terra!
junta a tua voz à minha voz,
e sob a agonia quente deste céu,
vem dizer também,
que a Pátria não morreu.
Vem dizer
que para além
de tudo o que é passado e porvir,
a Pátria das palmeiras e dos dongos ficará...
p’ra sempre ficará brilhando,
sobre a campa dos Homens que se foram
e sobre o berço dos Homens que hão-de vir…
1957(?)
 Alda Lara, Poemas, Porto, Vertente, 1984 (4ª ed.)